Muito se discute hoje em dia se os EUA devem algum tipo de ressarcimento a seus cidadãos negros pela escravidão; devem, sim. Mas há uma dívida ainda mais alta, do país e da Europa, que continua pendente: a que eles têm com os outros países por suas aventuras colonialistas, pelas guerras que lhes impuseram, pela desigualdade que impingiram à ordem mundial, pelo excesso de carbono que despejam na atmosfera.
Claro que as nações credoras não estão sugerindo que o Ocidente envie sacos e mais sacos de ouro todo ano para a Índia ou a Nigéria. Elas pedem apenas justiça, com a abertura das fronteiras dos países ricos para seus produtos e sua gente, para tecidos indianos e médicos nigerianos. Ansiosas por mudança, pedem que a imigração seja a moeda indenizadora.
Atualmente, 250 milhões de pessoas são imigrantes. E elas estão se movimentando simplesmente porque os países ricos roubaram o futuro dos mais pobres. Sejam os iraquianos e sírios fugindo dos efeitos das guerras norte-americanas ilegais ou africanos querendo trabalhar para seus antigos mestres colonizadores europeus, sejam os guatemaltecos e hondurenhos tentando entrar no país que lhes fornece armas e compra suas drogas: eles estão vindo para cá porque nós estivemos lá.
E antes de você lhes pedir que respeitem nossas fronteiras, pergunte a si mesmo se o Ocidente alguma vez respeitou as fronteiras de alguém.
Da mesma forma que há o imposto sobre as emissões de carbono, deveria haver uma "taxa de migração"
A grande maioria dos migrantes sai de um país pobre para outro que esteja em melhores condições, não para um que seja rico. As cotas de imigração deveriam ser baseadas no tamanho do estrago promovido pela nação hospedeira. Assim, a Grã-Bretanha deveria receber um número "x" de indianos e nigerianos; a França, de malineses e tunisianos; a Bélgica, de congoleses.
E, quando migrassem, deveriam ter o direito de levar suas famílias e ficar – ao contrário dos "operários convidados", que foram atraídos a engrossar a mão de obra pós-guerra dos colonizadores só para serem convidados a se retirar quando seus mestres já não precisavam mais explorá-los.
A República Dominicana, onde os EUA ajudaram a manter o ditador Rafael Trujillo por três décadas, deveria gozar de um alto nível preferencial, como também o Iraque, ao qual impusemos uma guerra que resultou em 600 mil mortes. A justiça agora deveria exigir que deixássemos entrar 600 mil iraquianos no país, ou seja, para cada morte causada, permitir que alguém tenha uma nova chance de vida.
Cerca de 12 milhões de africanos foram escravizados e levados para o outro lado do Atlântico pelos poderosos europeus. Doze milhões de africanos deveriam, portanto, poder viver nos países que ficaram ricos à custa dos sacrifícios de seus ancestrais, não? Todo mundo sairia ganhando: os africanos, que ainda sofrem as consequências da escravidão na terra natal, e os países que os receberiam, beneficiados pela mão de obra, mas dessa vez sem dor e por um salário digno.
Leia também: Refugiados: assimilar a cultura local é essencial (artigo de Ricardo Bordin, publicado em 27 de agosto de 2017)
Leia também: Por que qualquer um de nós poderá ser migrante (artigo de Laila Lalami, publicado em 24 de março de 2019)
Da mesma forma que há o imposto sobre as emissões de carbono, deveria haver uma "taxa de migração" para as nações que enriqueceram emitindo gases estufa. Os EUA são responsáveis por um terço do excesso de CO2 na atmosfera; a Europa, outro quarto. Cem milhões de pessoas fugindo de furacões e secas terão de ser reassentadas até o fim do século. Os EUA deveriam receber um terço desse número e a Europa, outro quarto.
A conta vai sair alta para o Ocidente, mas ela deveria ser paga com o maior prazer. Sem imigração, o crescimento econômico norte-americano teria sido 15% mais baixo de 1990 a 2014; o do Reino Unido, 20%. Os imigrantes respondem por 14% da população total dos EUA, mas abriram 25% de todos os novos negócios e, desde 2000, ganharam mais de 30% dos prêmios Nobel de Química, Física e Medicina que o país faturou.
Os migrantes representam 3% da população mundial, mas contribuem com 9% do PIB. Os impostos que pagam sustentam os sistemas previdenciários das nações ricas, cujas taxas de natalidade são baixas.
Quem quiser ajudar os países mais pobres do mundo, e rápido, afrouxe as barreiras para a migração. Esses estrangeiros enviaram US$ 689 bilhões para seus países de origem, o que corresponde a três vezes mais que os ganhos diretos da abolição de todas as barreiras comerciais, quatro vezes mais que toda a ajuda humanitária oferecida por esses governos e 100 vezes o volume de todo o perdão das dívidas.
Rodrigo Constantino: Imigração descontrolada (publicado em 16 de fevereiro de 2017)
Assim, as nações ricas são obrigadas a aceitar todo e qualquer indivíduo originário daquelas que despojaram? Há sérios argumentos contra as fronteiras abertas, como o de que os EUA são o barco salva-vidas em um mar de países pobres, e se deixarem muita gente entrar vão acabar se afundando. E há quem defenda a ideia de que, se realmente devemos indenização àqueles de quem nos aproveitamos, então que o ressarcimento seja em dinheiro, ou o reassentamento em outro lugar.
Não há argumentos sérios que demonstrem os prejuízos econômicos de longo prazo a países que aceitam imigrantes, mesmo em grandes números. Durante a época da migração em massa, um quarto da população da Europa se mudou para os EUA, que substituiu o Velho Continente como o símbolo máximo de riqueza e poder.
Um mundo com fronteiras mais abertas teria um breve interlúdio de movimento em massa, mas depois a migração efetivamente cairia, pois o dinheiro e a satisfação estariam divididos de forma mais igualitária, e muito mais gente permaneceria na terra natal.
Para evitar o pagamento da "taxa de migração", os países ricos teriam de parar de apoiar e manter ditadores, de fomentar guerras devastadoras e desnecessárias, controlando suas corporações multinacionais para que não pratiquem a exploração predatória das riquezas minerais das nações pobres e garantindo que o comércio global seja mais justo. Do contrário, a conta a ser paga pelos estragos nessas nações menos favorecidas será proibitivo.
O que os EUA consideram uma boa política de imigração não tem nada a ver com o que é moral e justo para os povos cujo destino os norte-americanos afetaram, no passado e no presente. Pode até fazer sentido para o país permitir a entrada de mais indianos qualificados e menos latinos sem qualificações, mas o fato é que ele lhes deve muito e deveria abrir as portas para os vizinhos do sul.
A história se compõe de acontecimentos que nunca poderão ser "desacontecidos"; a história é o que está acontecendo neste momento. É preciso prestar atenção nisso. E quitar a dívida.
Suketu Mehta é professor de jornalismo na Universidade de Nova York e autor, mais recentemente, de "This Land Is Our Land: An Immigrant’s Manifesto".
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