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 | Cesar Machado/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Cesar Machado/Arquivo Gazeta do Povo

Quero começar essa reflexão com uma reposta simples: não, os professores de Humanas não são, necessariamente, de esquerda. Aliás, muitos professores da área das Exatas e das Biológicas o são. Não há incompatibilidade entre a disciplina que você ministra e suas posições políticas. Isso, é claro, não passa de uma generalização. E, como tal, é uma falácia. Falácia é um argumento falso que tenta passar por verdadeiro. Uma mentira, portanto.

Dito isso, quero destacar o que me parece ser o ponto mais importante dessa reflexão: por que associar o ensino das Humanas – História, Artes, Filosofia, Literatura – a uma posição política e/ou ideológica? Há aqui algo mais do que uma simples falácia ou uma expressão de desconhecimento, aquilo que chamamos de “ignorância”. Há uma intenção, que é a elaboração de uma ação voltada a um fim que ainda não é muito claro para o espectador naquele momento. E essa intenção pode não ser nada democrática. Ou mesmo civilizacional.

Montaigne imaginava que a melhor forma de educação das crianças era estimulando o diálogo com as outras

Tentarei agora explicar melhor este ponto. Para isso, usarei uma conceituação elaborada pela professora Martha Nussbaum, filósofa norte-americana, um das 100 intelectuais mais influentes do mundo, segundo a Foreign Policy, professora da Universidade de Chicago, tendo lecionado em Harvard e Brown e que participará do Fronteiras do Pensamento desse ano. Martha Nussbaum estabelece uma diferença entre “empatia” e “compaixão”. Para ela, empatia é a “habilidade de pensar como é estar no lugar do outro”. É um passo e tanto, mas, segundo ela, ainda não suficiente para consolidar uma sociedade democrática e civilizada. Afinal, o torturador, o sádico, o agressor de mulheres, menores e homossexuais, tem empatia. Por isso diverte-se e vangloria-se muitas vezes de seus atos. Compaixão, por sua vez, é o sentimento que “diz que os obstáculos enfrentados pelo próximo são ruins”. Observe: a compaixão é um sentimento que não exige que você se coloque no lugar de ninguém, apenas que saiba que o outro passa por maus bocados. Você sabe disso, tem consciência disso, não disfarça essa informação, não escamoteia esse conhecimento. Isso é compaixão.

E como podemos desenvolver essa habilidade, essa atenção, esse cuidado com os obstáculos que os outros enfrentam e compadecer-se deles, mobilizando nossa própria energia e tempo para ajudar? Segundo a autora, há um só caminho: o ensino das Humanidades na escola! A arte, a literatura, a história, a filosofia são os caminhos, em uma sociedade laica, para que uma criança aprenda que um colega que tem uma orientação sexual diferente, uma etnia diferente, uma limitação diferente, qualquer coisa diferente, enfrenta obstáculos que não precisariam estar ali e que, por isso, precisam ser removidos. E por quem? Por você, por mim, por todos.

E o que faz esta postura, esse aprendizado, essa prática civilizacional, alguém se tornar “de esquerda”? Nada.

Leia também:A história de uma geração que não cresceu (artigo de Rodrigo Neves, publicado em 21 de junho de 2017)

Opinião da Gazeta:  Hoje é dia de doutrinação (editorial de 10 de junho de 2016)

Parece, claramente, que esse tipo de “acusação”, esse dedo apontado como o de um policial diante de um flagrante, visa tentar impedir que se desenvolva esse espírito de compaixão entre as crianças e os jovens. Há muitas razões para isso, a começar pela própria ideia de “sucesso”, que só é possível em referência a algo ou alguém. Bacana (muito!) é o sucesso de pessoas que disputam coisas em igualdade de condições. Mas há tanta gente medíocre e preguiçosa que precisa de uns (vários!) pontos de vantagem. E aí se acostumam com isso, imaginando que esse privilégio (de estar sempre à frente, mesmo sem ter feito nada para isso) é um direito e que buscar tratar os outros com o mesmo sentimento de igualdade (igualdade de oportunidades, de possibilidades) é um risco. Uma verdadeira ameaça. E então nasce o mito do “esquerdismo”. E toda essa algaravia desconcertante.

Montaigne, livre-pensador do século 16, imaginava que a melhor forma de educação das crianças era estimulando o diálogo com as outras. E para quê? “Para desenvolver o senso de relatividade entre todas as coisas”. Crianças de cabeças “bem feitas”, dizia ele. Bem feitas pelo atrito de umas com as outras. Só pelo aprendizado do que o outro passa e pela compreensão de que há vidas ruins, sórdidas, doentias, desafortunadas é que podemos traçar o que é correto e incorreto no âmbito público, aquele espaço no qual pessoas diferentes vivem. A isso se chama “civilidade”. E sem essa civilidade seremos apenas bestas. Não é a toa que História, Filosofia, Literatura e Artes se chamam “Humanidades”. O que se será que elas formam? Não, não são “esquerdistas”. Tente mais uma vez...

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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