Bactéria Escherichia coli aumentada em 10 000 vezes em um microscópio eletrônico.| Foto: /Wikimedia Commons

Tendo como cenário um sanatório para tuberculosos nos Alpes Suíços, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, vai fundo no “processo febril de decadência e reparação” que é a vida.

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Nos 100 anos que se passaram desde então, o uso de antibióticos fez com que a tuberculose desaparecesse do mundo moderno. Só que agora surgiu uma versão super-resistente dessa bactéria horrível, e não temos nada no armarinho de remédios com que combatê-la. Deslumbrada com o poder desses medicamentos, a medicina passou a receitá-los mesmo quando não eram necessários, fazendo da pandemia uma possibilidade, pois a cepa original da bactéria acabou se adaptando a eles.

Entretanto, o ser humano também é resiliente e sabemos, há décadas, que existem “germes bons” que podem combater ou derrotar os “germes ruins” no nosso organismo. O problema é que o ambiente industrial, as drogas antibacterianas e os procedimentos médicos sofisticados podem ao mesmo tempo matar os “mocinhos”, deixando os “bandidos” fazerem o que bem quiserem, sem controle.

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No mês passado, uma equipe de cientistas liderada pela venezuelana Maria Gloria Dominguez-Bello, da Universidade Rutgers, sugeriu uma fonte para novas curas: a criação de um banco mundial de micróbios, ou um sistema de “cofres”, talvez em um clima onde a refrigeração seja mais fácil, para coletar e preservar esses agentes benéficos, principalmente os originários de países menos afetados pela modernização. Quem sabe o efeito que esses bióticos ancestrais sobreviventes podem ter no entendimento e tratamento das doenças atuais?

Só crescem as evidências de que uma menor diversidade microbiana pode estimular ou piorar as doenças intestinais inflamatórias

Na revista Science, Dominguez-Bello e Rob Knight, da Universidade da Califórnia em San Diego; Jack A. Gilbert, da Universidade de Chicago; e Martin J. Blaser, do Centro Médico Langone da Universidade de Nova York, defendem a urgência da preservação de amostras de fezes e material recolhido da pele, boca, vagina e nariz, especialmente dos povos tradicionais mais remotos, antes que a modernidade mate todos esses micróbios.

O essencial para a compreensão dessa proposta é ter em mente que nem todos os germes são nocivos; há bactérias e vírus que ajudam na digestão, outros que regulam o sistema imunológico. Acontece que as práticas médicas, dietéticas e de higiene de hoje em dia ameaçam vários deles de extinção. Os cientistas alegam que a diversidade das populações humanas em que eles ocorrem gera diversidade em seu funcionamento. Há germes que se mostram até “anfibióticos”, ou seja, podem ser bons ou ruins dependendo de que outros micróbios estejam presentes e dos genes, da idade ou do ambiente em que vive o ser humano de quem é hospedeiro.

Resumindo de forma simples: enquanto quase erradicamos a tuberculose, o arsenal de remédios milagrosos, associado a práticas como a cesariana eletiva, os alimentos processados e a água purificada, foram dizimando muitos dos micróbios bons junto com os germes tóxicos que vêm com o nascimento. Nós os adquirimos na passagem pelo canal vaginal e na amamentação, em uma evolução concomitante de mãe e micróbios indissolúvel há pelo menos 200 mil anos.

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Pesquisadores como Jeff Leach, que estudam os caçadores-coletores hadza na Tanzânia; e Cecil Lewis e Alexandra Obregon-Tito, que trabalham com os matsés no Peru, concluíram que os germes benéficos vêm desaparecendo com menos frequência nas sociedades menos desenvolvidas. De fato, os norte-americanos podem ter perdido metade de sua diversidade microbiana nas últimas décadas. Na China e na Índia, a perda é ainda mais rápida, acompanhando o desenvolvimento acelerado de ambos os países.

O estudo também mostra uma ligação muito forte entre essa perda, especialmente no início da vida, e o aumento a níveis epidêmicos de doenças e transtornos graves. No Canadá, Meghan Azad provou que os bebês que tomam antibióticos têm maiores chances de se tornarem crianças e adolescentes obesos; a pesquisa de Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta comprova que, se os bebês de 3 meses de vida não tiverem índices normais de quatro bactérias essenciais, desenvolvem predisposição à asma. Além disso, só crescem as evidências de que uma menor diversidade microbiana pode estimular ou piorar as doenças intestinais inflamatórias, a diabete, as alergias alimentares e o autismo.

Um exemplo do potencial benéfico de um banco de germes vem de Blaser, um dos autores da Science: “A verdade é que a grande maioria das doenças infecciosas não representa uma proporção de 100% de mortalidade. Nossos ancestrais sobreviveram a muitas pragas com a ajuda desses micróbios. Embora os antibióticos nos curem de alguns males, o fato é que a resistência a esses medicamentos poderosos está crescendo. Novos tratamentos para infecções resistentes, como a nova cepa de tuberculose, podem advir dos nossos micróbios antigos”.

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Essas novas terapias podem envolver antibióticos recém-descobertos ou o uso de bacteriófagos. Amostras de fezes podem conter também vírus do trato digestivo da pessoa – o que, em teoria, pode apontar para a cura da tuberculose resistente e outras doenças.

Criar esse reservatório também aumentaria o volume das transferências de tecnologia para o mundo em desenvolvimento. Dominguez-Bello é defensora ferrenha da criação desse tipo de recurso público, pois alega que ele poderia ser o catalisador da criação de coletas microbianas locais ao redor do mundo.

Entretanto, muitas perguntas continuam sem resposta: um banco como esse ofereceria somente preservação em longo prazo? Uma seleção de trabalho para países e pesquisadores? Quais seriam os critérios de retirada – uma declaração de emergência médica da OMS?

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Mas o conceito em que se baseia o projeto é sólido. Temos de começar a reunir recursos não só para impedir a perda dos germes bons, mas também para restaurar sua diversidade e população. Não dá para recuperar micróbios já extintos. O segredo do sucesso é manter o equilíbrio do “processo febril” de Mann, que é a própria vida.

Sarah Schenck é uma das diretoras e produtoras de um documentário que está sendo feito sobre o papel vital dos micróbios na saúde humana.
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