O mundo tem olhado a segurança viária com preocupação nas últimas décadas. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, mais de um milhão de pessoas perdem a vida no trânsito por ano em todo o globo, sendo a maior causa de morte de jovens entre 10 a 19 anos. No Brasil, foram quase 400 mil pessoas que perderam suas vidas no trânsito entre 2010 e 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Por isso, precisamos falar de segurança viária.
Deslocar-se pela cidade não deveria ser motivo de risco de vida para ninguém. Mas de que forma podemos caminhar à chamada “Visão Zero”, princípio cunhado na Suécia na década de 1990, segundo o qual nenhuma morte no trânsito é aceitável, e evitar que essas mortes e lesões graves ocorram? Frente a essa verdadeira pandemia, a ONU estabeleceu a Década de Ação pela Segurança no Trânsito entre 2011 e 2020, buscando fomentar que governos ao redor do mundo instruíssem políticas e práticas que reduzissem ao menos pela metade as mortes no trânsito. No entanto, essa meta não foi alcançada na maior parte dos países, de forma que a iniciativa foi prorrogada para uma segunda década até 2030.
Diferente do que tradicionalmente se entendia, hoje sabemos que a responsabilidade pela segurança viária não está relacionada apenas ao comportamento das pessoas caminhando ou conduzindo seus veículos na cidade. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada, onde fiscalização, sinalização e engenharia, dentre outros fatores muito ligados à política pública e a ação do Estado, também têm papel fundamental. É preciso mudar o paradigma tradicional de que a responsabilidade deve recair sobre quem se locomove.
Os sistemas seguros reconhecem que as pessoas cometem erros, mesmo que de forma involuntária, e que o sistema de mobilidade deve antecipar estes erros para evitar uma tragédia.
Pesquisas realizadas pelo International Transport Forum da OCDE e pelo WRI Ross Center em anos recentes já demonstraram que cidades que incorporaram a abordagem dos sistemas seguros foram mais efetivas e eficazes na redução das mortes no trânsito. Essa abordagem transforma o paradigma tradicional e entende que o sistema de mobilidade deve ser concebido de forma a reduzir riscos de morte e lesão grave quando ocorre um sinistro de trânsito.
Os sistemas seguros reconhecem que as pessoas cometem erros, mesmo que de forma involuntária, e que o sistema de mobilidade deve antecipar estes erros para evitar uma tragédia. Em outras palavras, entende que uma boa cidade “perdoa” esses erros ao invés de penalizar a pessoa com uma lesão grave ou morte. Mas é um grande desafio levar isso a cabo, ainda mais em um momento histórico no qual as cidades se adensam, se consolidam e a mobilidade se transforma com grande rapidez.
Frente a esse desafio complexo, em um mundo onde a oferta de dados e tecnologia cresce progressivamente, não é apenas possível, mas imperativo compreender como a cidade e suas ruas estão construídas, como os deslocamentos acontecem na cidade e as relações entre os sinistros e as características viárias de onde eles ocorrem. Só assim poderemos efetivamente incorporar a abordagem dos sistemas seguros para direcionar melhores políticas públicas, programas e obras para caminharmos em direção à meta de zerar mortes no trânsito.
Compreender essas dinâmicas para elaborar soluções inovadoras bem contextualizadas e embasadas é um exercício que vem sendo realizado por organizações como o Instituto Cordial, realizador de estudos e iniciativas como o Painel da Segurança Viária em parceria com diversas cidades brasileiras, buscando colaborar com seus desafios específicos em segurança viária.
O instituto apresentou recentemente o estudo Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade, realizado em parceria com o Movimento Inovação Digital (MID), organização que busca integrar empresas do meio físico e digital com ações públicas e privadas de fomento de tecnologias. Uma das conclusões do estudo é que, para além das conhecidas desigualdades sociais, as características das ruas, dos deslocamentos e a distribuição dos sinistros de trânsito também são muito desiguais nos 96 distritos de São Paulo, implicando desafios muito diferentes nas diversas regiões da cidade.
O estudo mostrou que a largura das ruas, considerando tanto a largura de calçadas quanto da área asfaltada, é significativamente maior nos distritos do centro expandido do que de outras regiões da cidade. Isso se dá em função da forma como a cidade foi urbanizada ao longo do tempo, fato que também se relaciona com a atual concentração de empregos e serviços nestas regiões centrais, gerando o enorme movimento pendular que milhões de pessoas fazem todos os dias entre casa e trabalho. Não por acaso, como também demonstrado no estudo, nestes distritos centrais se concentra a maior parte das viagens realizadas a pé, de bicicleta, de carro, de moto e de ônibus em São Paulo.
De acordo com a ONU-Habitat, em sua publicação Streets as public spaces and drivers of urban prosperity, a distribuição dos espaços da cidade e a conectividade de ruas são fatores que ajudam a explicar a prosperidade de uma cidade. Diz que sistemas de vias mais densos e conectados estão entre as características de cidades mais prósperas, analisando diversas cidades do mundo e comparando-as com um Índice de Conectividade de Ruas.
Analisando de forma inédita os distritos da cidade de São Paulo com os indicadores que compõem este índice da ONU-Habitat, o estudo realizado pelo Instituto Cordial demonstrou que, mesmo que as ruas dos distritos centrais sejam normalmente mais largas, o indicador “Terra alocada para ruas” (LAS, no original) possui patamares médios a altos também em distritos de fora do centro, onde as ruas são mais estreitas. Além disso, demonstrou que o indicador “Densidade de interseções” (SID, no original) é mais alto em distritos periféricos, especialmente na Zona Leste da cidade.
Assim como no caso dos distritos centrais, essas características dos distritos de fora do centro também podem ser explicadas por seus perfis históricos de urbanização, resultando em grande densidade de vias e cruzamentos, mas com predomínio de ruas estreitas que desembocam em poucas vias arteriais muito grandes, com grandes carregamentos e infraestrutura de transporte coletivo, como a Radial Leste. Ou seja, se teoricamente não falta espaço e há boa conectividade, em boa parte dos distritos da cidade não necessariamente isso se reverte em uma cidade melhor, mais próspera ou mais segura para seus habitantes.
Enquanto a maior parte dos empregos e deslocamentos se concentra nos distritos centrais onde há ruas mais largas, seria razoável supor que neles também se concentram mais sinistros de trânsito. Dos mais de 124 mil sinistros ocorridos entre 2013 e 2019, há distritos que agregam mais de três mil sinistros enquanto outros não passam a 40.
Entretanto, a partir de simulações para estimativa da quantidade de viagens que passam por cada distrito, realizadas a partir dos dados da pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo, o estudo apresenta que há menor concentração de sinistros para cada 100 mil viagens nos distritos no centro expandido do que fora dele. Enquanto nos distritos centrais este indicador varia entre 6 a 20 sinistros para cada 100 mil viagens, no restante da cidade ele varia de 9 a 38.
Ruas estreitas, calçadas estreitas, grande densidade de vias e de cruzamentos, mesmo com quantidades moderadas de sinistros de trânsito e baixas de deslocamentos em comparação com as áreas centrais, deixam claro como os desafios de mobilidade urbana e segurança viária são distintos entre os distritos da cidade de São Paulo. As soluções do passado e mesmo aquelas bem sucedidas em áreas centrais não vão resolver os novos desafios que se apresentam em outras regiões da cidade.
Para zerar as mortes no trânsito, é preciso inovar e agir de forma coordenada, compartilhando responsabilidades com base em políticas públicas bem embasadas, conhecendo e considerando as realidades, especificidades e desafios locais. Não é possível pensar a cidade do futuro sem conhecer profundamente a cidade do presente. Novos elementos de infraestrutura e inovações em segurança viária e em serviços urbanos devem levar em conta esses desafios para que nossas cidades se desenvolvam para serem mais justas, seguras e sustentáveis.
Luis Fernando Villaça Meyer é diretor de operações do Instituto Cordial; Vitor Magnani é presidente do Movimento Inovação Digital (MID).