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Nos últimos dias, o governo debateu se seria adequado permitir a empresas adquirir vacinas diretamente junto aos laboratórios. Seria legítimo que empresas vacinem seus funcionários, por exemplo? Após ter sinalizado que o “livre comércio” de vacinas seria proibido, o presidente da República hesitantemente sugeriu que permitiria o expediente, desde que as empresas também doassem para o SUS. Nem sequer está claro quais laboratórios aceitariam vender às empresas, e o governo já quer proibir. A situação é absurda, mas revela erros profundos de avaliação sobre a maneira correta de se enfrentar o desafio da vacinação. O correto é o governo sair do caminho, facilitar ao máximo a aquisição e distribuição de vacinas.
Atualmente, somente o Estado brasileiro pode adquirir e distribuir vacinas contra a Covid-19 no Brasil. Tudo deve passar pelo SUS. Apesar de haver alguma concorrência entre diferentes entes da Federação, na prática o processo segue o ritmo lento e os protocolos do setor público brasileiro. O governo negocia, compra, distribui e decide quem pode e quem não pode tomar a vacina, que é administrada gratuitamente. Sim, é uma bênção que no Brasil tenhamos um Estado que, apesar de defeitos evidentes, seja funcional o bastante para administrar missão tão importante. Mas o Brasil se prejudica imensamente por dar ao Estado a exclusividade nessa tarefa.
A exclusividade do setor público nessa operação nos faz mais mal do que bem. O Instituto Butantan declarou há alguns dias que seria forçado a exportar vacinas porque o governo federal tardava a sinalizar interesse em adquiri-las. O presidente da República declarou que aguardava que os laboratórios o contatassem para começar a negociar a venda de inoculantes ao Brasil. Além desse descaso aviltante, atrasos em entrega, problemas de distribuição, fraudes nas filas de vacinação já povoam o noticiário. Um dia ainda saberemos como foram negociados os preços dos produtos adquiridos, assim como o tempo que se levou para cada tomada de decisão. A exclusividade do setor público nos atrasa, e todos temos pressa.
Há uma forte demanda por vacinação no Brasil, e o país tem uma sociedade civil dinâmica e estruturada para adquirir e distribuir vacinas segundo a instituição mais eficiente jamais inventada pelo ser humano para distribuir produtos: o mercado. Indivíduos e empresas estão dispostos a pagar de seu próprio bolso para poderem vacinar a si, seus próximos, seus funcionários, seus clientes, e isso deve ser estimulado, jamais proibido! Um brasileiro que pague de seu próprio bolso para se vacinar não age contra o país: ele se torna uma barreira contra o vírus, um indivíduo apto a trabalhar, ajudar os outros, servir seu país. Tudo deve ser facilitado, tudo deve ser redesenhado com o objetivo de imunizar a população. O importante é vacinar, e não vacinar pelo governo.
Um brasileiro vacinado por conta própria contribui para o fim da pandemia tanto quanto um brasileiro vacinado pelo SUS. O setor privado complementa o governo, e o governo pode usar isso em proveito de sua atuação. O SUS é necessário, mas o sistema privado de saúde também o é. O melhor que o governo pode fazer agora é retirar quaisquer barreiras, liberar a criatividade e o poder de ação de toda a sociedade. Vacinas aprovadas nos Estados Unidos e Europa devem ser automaticamente autorizadas no Brasil, e todos aqueles capazes de adquiri-las e administrá-las devem ser imediatamente autorizados. Havendo vacinas à venda no mundo, temos de autorizar quem quer que seja a adquiri-las, e não esperar pela boa vontade de um burocrata, do presidente da República ou da Anvisa. Atualmente nós temos de esperar.
Autorizar um mercado de vacinas só aumentaria a quantidade de vacinas no Brasil, mas é verdade que isso poderá mudar os grupos que as receberão primeiro. Vacinas não gratuitas obviamente limitam o acesso àqueles que podem por elas pagar, e a falta de critérios pode levar a vacinação a se desviar do principal grupo de risco, os idosos. Nenhum desses dois argumentos é contundente. Primeiro, porque o Estado poderia focalizar sua atuação nos grupos que seriam excluídos economicamente pelo mercado de vacinas, dispensando-se de visar à população por inteiro. Em segundo lugar, o desvio de foco da vacinação para grupos não idosos não é algo a ser temido, pois a vacinação de jovens pode trazer vantagens importantes no combate à pandemia. Na pandemia de Covid-19, quem mais morre são os idosos, mas quem mais transmite são os jovens, pois circulam, trabalham e interagem. Vacinar jovens tem o condão de criar barreiras contra a disseminação da doença, reduzindo a taxa de transmissão e impedindo que ela chegue a idosos. Outros países, como Indonésia, China e Israel, praticam a vacinação generalizada contra a Covid-19 com base nesse argumento. A redução da taxa de transmissão não é um efeito a ser menosprezado numa doença que cresce exponencialmente.
Por fim, lembremos quão excepcional é a situação que vivemos. Mais de 200 mil brasileiros já perderam a vida contra esse novo vírus, e a doença continua circulando na sociedade a despeito de medidas restritivas, uso de máscaras e isolamento social, em maior ou menor medida respeitados pelos brasileiros. A vacina é uma oportunidade de nos liberarmos dessa situação sufocante que ameaça diretamente a saúde do nosso povo, além de aleijá-lo nas suas oportunidade econômicas e de sociabilidade. Com mil brasileiros morrendo por dia, cada dia a menos de epidemia conta imensamente, e cada braço vacinado conta. O que mais devemos temer no momento são atrasos, perdas e ineficiência. A imunização do Brasil é uma tarefa para toda uma sociedade, e não somente para o governo. O setor privado tem as condições de suprir deficiências do governo e colaborar com essa missão. Precisamos quebrar o monopólio estatal das vacinas.
Alipio Ferreira Cantisani é mestre e doutorando em Economia pela Toulouse School of Economics.