Meu primeiro contato com os EUA foi por intermédio dos carrinhos de bagagem – em meados de 1992, quando aterrissei no Aeroporto Kennedy, trazendo comigo uma mala cheia de livros tão pesada que me fez sair de Casablanca, no Marrocos, com excesso de bagagem. Uma vez que eu não podia pagar a taxa, tive de levá-la comigo dentro do avião, onde a comissária me ajudou a acomodá-la no compartimento sobre os assentos. Chegando a Nova York, tive de sair da aeronave e passar pelo controle de passaportes com ela, as mãos já doendo pelo esforço. Senti um alívio imenso ao me deparar com uma fila de carrinhos; tentei tirar um, mas descobri que, para liberá-lo, teria de desembolsar três dólares. E me lembro de ter pensado: mas que tipo de lugar desumano é esse?
Eu não tinha três dólares, nem cinco, nem dez; o dinheiro que trazia comigo eram as notas maiores que recebera na casa de câmbio onde trocara minha mirrada poupança. Já começava a duvidar que conseguiria chegar ao terminal de onde sairia minha conexão para a Califórnia, quando ouvi uma voz atrás de mim: “Precisa de ajuda?” Era um homem de meia-idade e boné de beisebol que pegou minha bagagem e a levou até o ônibus de traslado. E, durante todo o caminho até o portão seguinte, outras pessoas se ofereceram para me ajudar. Percebi então que aquele não era um lugar desumano; os norte-americanos se mostravam mais que dispostos a auxiliar estranhos.
Não tem um dia em que eu não seja lembrada de que ser imigrante é ter superado um limite
Pois estranha aqui já não sou mais; nos vinte e muitos anos desde que cheguei ao Kennedy, tive bastante tempo para aprender a história, a cultura e a política deste país. Embora meu plano inicial fosse estudar linguística e voltar ao Marrocos, o destino interveio: conheci um norte-americano, nós nos apaixonamos e nos casamos. Agora sou imigrante. Não há nada extraordinário nessa condição – eu a compartilho com milhões de pessoas –, mas não tem um dia em que eu não seja lembrada de que ser imigrante é ter superado um limite, é ver o mundo de dois pontos de vista ao mesmo tempo, e entendê-lo em tons de cinza, não em preto e branco.
Quando ouço os políticos falando de imigrantes, a impressão que tenho é a de que se referem a fantasias de sua própria imaginação, criadas para ilustrar um ponto na conversa. O presidente fala de “criminosos”, “estupradores” e “terroristas”, depois os usa como justificativa para erguer um muro, separar famílias na fronteira, prender filhos de refugiados em acampamentos e impedir a entrada de cidadãos de cinco países muçulmanos; seus críticos, por outro lado, descrevem os recém-chegados como pessoas de talento único que abrem novos negócios, entram para as Forças Armadas, inovam com tecnologias revolucionárias, concorrem a uma vaga no Congresso ou “dão conta do recado”.
Ao pintarem os imigrantes como heróis ou vilões, esses políticos revelam encarar a questão como apenas um caso de cumprimento da lei, mas a realidade é muito mais complexa. Como outras espécies neste planeta, os seres humanos são criaturas migratórias; quando de repente se veem desesperadamente necessitados de segurança física ou oportunidades econômicas, saem de casa e começam tudo de novo em outro lugar. Sempre foi assim. As histórias mais antigas que contamos uns aos outros são de desalojamento: a queda de Adão no Éden, a fuga de Moisés do Egito, a hégira de Maomé. Tentar parar esse processo erguendo muros, a meu ver, é tão ineficiente quanto não natural. É como tentar parar o fluxo de um rio.
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Uso a correlação deliberadamente. Os cientistas preveem que, ao longo da próxima década, a Terra estará 1,5 °C mais quente, talvez até 2 °C, se não tomarmos e mantivermos medidas drásticas em relação à mudança climática. Mesmo na melhor das hipóteses, testemunharemos furacões poderosíssimos, incêndios florestais, secas e outras ocorrências climáticas severas. E as consequências serão terríveis: perda de casas e meios de subsistência, fome, doenças, provavelmente conflito, mas, no fim, deslocamento. A migração, além de ser uma questão econômica, social e de política externa, é também climática.
Aqueles que foram poupados do desalojamento – pelo menos por enquanto – devem definir os papéis que querem assumir no desenrolar dessa história global. Que responsabilidade o povo norte-americano, por exemplo, tem em relação àqueles que vivem em lugares que foram destruídos pelas guerras que seu governo começou ou incentivou? E em relação àqueles que menos se beneficiaram com a industrialização, mas mais sofreram com ela? E como planeja se adaptar à migração global?
Semana passada, 50 pessoas foram mortas em Christchurch, na Nova Zelândia, durante as orações de sexta-feira, por um nacionalista branco que divulgou um manifesto contra muçulmanos e imigrantes. Conforme refugiados e migrantes reconstroem a vida em outros lugares, a intolerância e o antagonismo das comunidades que os receberam vão se revelando.
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Para que ocorra um debate proveitoso sobre a imigração, temos de deixar de lado ideias antiquadas que remetem a bárbaros nos portões e repensar cuidadosamente nossa reação aos deslocamentos inevitáveis que ocorrerão no futuro próximo. A imensa maioria de imigrantes não é composta nem de monstros perigosos, nem de gênios excepcionais – são pessoas comuns que se veem, por uma série de razões pessoais ou políticas, forçadas a sair de onde estão. E se vão ser recebidas por estranhos gentis ou por uma máquina sem rosto e indiferente como o carrinho de bagagens é uma escolha que os norte-americanos ainda podem se dar ao luxo de fazer.