A Constituição Federal de 1988 elevou a Mata Atlântica à condição de patrimônio nacional. Cobrindo originalmente uma área de 1.306.421 km2, séculos de exploração reduziram esta área a cerca de 102.000 km2. Em outros termos, mais de 90% de sua área foi convertida para dar lugar a outros usos da terra. A Carta Magna de 1988 determina que, a partir de então, a utilização da Mata Atlântica deveria ser feita, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
O regramento para atender ao disposto na Constituição se deu inicialmente por intermédio do Decreto 99.547/90, que vedava o corte e a exploração da vegetação nativa da Mata Atlântica. Posteriormente este decreto foi substituído pelo Decreto 750/93, que dispunha especificamente sobre o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração e, mais tarde, pelo regime trazido pela Lei 11.428/2006, dispondo sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, regulamentada pelo Decreto 6.660/2008. Em 1999, por meio de um decreto presidencial, ficou estabelecido 27 de maio como o Dia Nacional da Mata Atlântica. A data foi estabelecida em alusão à Carta de São Vicente, com a qual, em 1560, o padre José de Anchieta descreve e ressalta a grandiosidade das florestas tropicais do Brasil.
Desde que começou o monitoramento de sua cobertura vegetal, dados dos últimos 32 anos mostram que persistiu o avanço sobre a Mata Atlântica, com uma taxa anual média de desmatamento da ordem de 60 mil hectares. Mantida essa taxa, teríamos Mata Atlântica por mais um século e meio. A partir de 2008, quando já dispúnhamos, então, de uma lei de proteção e do decreto que a regulamentava, essa média foi reduzida; contudo, ainda continuamos perdendo 21 mil hectares de Mata Atlântica a cada ano.
Para um bioma tão ameaçado, e que teve conversão de praticamente 90% da sua área original, os números do desmatamento são inquietantes. O que nos impele, como sociedade, a seguir avançando sobre os parcos remanescentes da Mata Atlântica pode ser traduzido por um misto de indiferença, imediatismo e uma enorme capacidade de transferência de responsabilidades.
Segundo o entomologista norte-americano Edward Wilson, a indiferença para com o ambiente é consequência de uma característica básica da natureza humana: nossa tendência de se envolver emocionalmente apenas com uma pequena região geográfica, um número limitado de pessoas e duas ou três gerações futuras. Se assim for, parece que estamos chegando ao tempo de nos preocuparmos com a Mata Atlântica, já que ela está significativamente reduzida e, no ritmo atual de desmatamento, nada restará para a terceira geração futura. Mas precisamos lembrar que a população e o consumo continuam crescendo, com ricos ficando mais ricos e a pobreza se avolumando. A perspectiva não é animadora. A política do atual governo federal está explicitamente voltada à eliminação dos obstáculos ao livre avanço da sanha predatória e devastadora sobre o patrimônio natural do país, incluindo a Mata Atlântica.
O foco sobre a Mata Atlântica não é mero acaso. Por incrível que possa parecer, até o momento a Mata Atlântica é, dentre os patrimônios nacionais elencados na Constituição de 88, o único que recebeu um regramento legal para regular seu uso. Nosso parlamento, além de conservador, é muito lento até mesmo na observância dos mandos constitucionais. Precisamos rever estratégias, principalmente, quando percebemos que a ação de um vírus, em menos de seis meses, se mostra bem mais eficiente que três décadas de reuniões diplomáticas para reduzir emissões de gases de efeito estufa, por exemplo.
Nosso sistema moral vigente mostra que todos nós temos alguma percepção do valor ambiental, quer seja para defender a manutenção de uma árvore ou nela vislumbrar uma forma de obtenção de lucro rápido. Para muitos, esta última é vista como uma virtude. Com muita frequência ouvimos o argumento de que as pessoas precisam estar em primeiro lugar. Tudo se justifica em nome do “progresso” e do “bem-estar”. E sob esta lógica perversa habilmente socializamos os prejuízos decorrentes da degradação ambiental.
Alguns afirmam que a ética de conservação de um país pode ser medida pela lucidez e eficácia de sua legislação para proteger a diversidade biológica. E nisso também o Brasil é contraditório. Temos um arcabouço legal razoável, com uma Política Nacional de Meio Ambiente, uma Lei de Crimes Ambientais, um Sistema Nacional de Unidades de Conservação e uma Lei da Mata Atlântica. Para alguns, esses instrumentos podem ser vistos como pactos de coerção bem razoáveis; contudo, para muitos cidadãos são ainda plenamente desconhecidos. Alguns setores os veem como ameaças e isso alimenta uma disputa que propicia apenas ligeiras e falsas percepções de vitória. Pouco importa se vivo abraçando araucárias ou imerso nas flutuações da bolsa de valores. Não devemos aguardar para saber o que fazer com o dinheiro quando não houver água disponível no mercado. Não há saída fora da política. Vivemos numa sociedade global, mas a política não nos tem dado muitas saídas. E, quando um ministro do Meio Ambiente declara querer se aproveitar do estado de excepcionalidade criado por uma pandemia para subverter instrumentos legais de proteção – e ele se referia à Mata Atlântica –, temos de entender por certa a necessidade de saída deste tipo de político de suas funções.
Destruímos a Mata Atlântica e avançamos agora sobre o Cerrado e a Amazônia. Somente no mês de abril deste ano, a Amazônia brasileira perdeu 529 km2, registrando a maior área desmatada nos últimos 12 anos. E o ministro do Meio Ambiente deliberadamente adota uma linha de atuação de confronto com a legislação ambiental. Desestruturação do Ibama e do ICMBio, conluio com grileiros para invasão de terras públicas, ameaças à integridade de terras indígenas, promoção de anistia aos infratores que degradaram ilegalmente áreas de preservação permanente na Mata Atlântica e a tentativa de reduzir o grau de proteção conferido pela Lei da Mata Atlântica são algumas das tantas iniciativas que hoje colocam a política de meio ambiente do atual governo federal em rota de colisão com a racionalidade, a sensatez e o decoro.
Ainda que reduzida e ameaçada, a Mata Atlântica nos fornece valiosos serviços ambientais e abrigo para uma grande diversidade biológica. Espécies novas, mesmo de árvores de grande porte, continuam sendo descobertas e descritas. Ainda que pouco tenhamos a comemorar no Dia da Mata Atlântica deste fatídico ano de 2020, precisamos juntar os fragmentos, conectá-los para construir uma nova normalidade na qual, quem sabe, o normal será a civilidade de uma relação respeitosa com a natureza. Em que ainda possamos reverenciar, todos os dias, o que restou da Mata Atlântica e propiciarmos condição para sua recuperação.
João de Deus Medeiros é biólogo, doutor em Botânica, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) e parceiro do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).
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