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Por que a sociedade alimenta a obsessão por uma felicidade irreal

Imagem ilustrativa. (Foto: Unsplash)

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Contrariando o diagnóstico do pai da psicanálise, para quem “a felicidade não se acha incluída nos planos da criação”, Martin Seligman, um dos principais divulgadores da chamada psicologia positiva, aposta na construção de pessoas “cronicamente felizes”, nos dizeres do professor João Freire Filho.

Na contramão da filosofia romântica, para quem a felicidade era um estado transitório e ilusório, o novo espírito do capitalismo emocional – uma cultura em que práticas e discursos emocionais e econômicos se configuram mutuamente – difunde pelo marketing que a felicidade é um bem subjetivo, um capital psicológico passível de ser acumulado e investido bem como “um combustível importante para quem pretende crescer na carreira”.

Freire Filho aponta que no contexto do capitalismo contemporâneo que monetiza afetos convertendo-os em aspectos essenciais do comportamento econômico e em que a vida emocional segue a lógica do intercâmbio e das relações econômicas a sensação de felicidade permite que a pessoa produza mais e ocupe uma posição mais alta. Ou seja, a felicidade é uma commodity imaterial, um recurso estratégico para otimização da saúde, da sociabilidade e da produtividade.

A felicidade seria, portanto, o combustível indispensável para a adaptabilidade do indivíduo na “sociedade do cansaço”, definida pelo filósofo Byung-Chul Han como uma sociedade que estabelece modos de vida que se expressam por um excesso ou tirania da alta performance e da positividade, produzindo sujeitos que devem buscar sempre superar-se com relação aos seus ganhos. Com isso, são engendradas subjetividades e sociabilidades agenciadas pela multitarefa e constante (auto)produção. Nessa lógica, para as pessoas alcançarem alto rendimento no trabalho, elas precisariam buscar ferramentas para elevar o seu coeficiente de felicidade.

Com esse fim, surgem e crescem as novas ciências instrumentais como a Psicologia Positiva, a neurociência e seus apêndices fast foods como os coachings, autoajudas e toda sorte de espiritualidades gerenciais.

Para Freire Filho, vivemos “na era da felicidade e sua reprodutibilidade científica” em que diversos saberes técnicos oferecem a possibilidade de construir pessoas cronicamente felizes, isto é, as novas ciências da felicidade nos ensinam que usufruir de um aumento sustentável de nosso bem-estar subjetivo é um projeto individual totalmente factível.

As ciências da felicidade ofertam a promessa do controle, da metrificação da vida cotidiana. Oferecem a ilusão da segurança frente a um mundo cada vez mais inseguro. Ensinam controles sobre quase tudo: quantidade de passos, calorias, respiração, batimentos cardíacos, pressão arterial, peso, alimentação, horas de sono, sexo, ovulação, entre outras inúmeras atividades. Constroem gadgets que monitoram nossas vidas. Com eles, estabelecemos metas e controlamos resultados. Tudo em nome do melhor de você em você mesmo.

Essas técnicas oferecem às pessoas o gerenciamento da vida em busca da alta performance: autoconfiança, ambição, entusiasmo, criatividade, espírito empreendedor. Pessoas dotadas desse capital psicológico positivo estariam mais perto da felicidade. São ferramentas em benefício da produtividade. Tudo em proveito da indústria da saúde e do sucesso, do ótimo desempenho e da felicidade.

Independentemente de faixa etária, gênero, classe socioeconômica, situação familiar, afetiva ou profissional, as regras do bem viver – leia-se do viver feliz – devem ser seguidas à risca para que não se padeça dos horrores da rejeição, do ostracismo ou do escárnio.

O contato social prescreve que para se atingir a felicidade almejada universalmente, “pecados imperdoáveis” como excesso de peso, sinais de envelhecimento, fadiga, fraqueza, hesitações, inseguranças e incertezas, o tédio, os diversos tipos de padecimento e, sobretudo, a dor de existir que nos fazem humanos, quiçá demasiadamente humanos, devem ser evitados a todo custo. É como se a própria condição humana estivesse sendo colocada em xeque nessa era da felicidade compulsiva e compulsória.

Mas, como anuncia Freire Filho, a exortação ao acúmulo incessante de felicidade pode converter-se em fonte de tremendas inquietudes e frustrações. Ao que parece, a compulsão pela felicidade, bem como pela alta performance, produz sofrimento em série para aqueles que não enxergam que a expectativa, as metas de felicidade são irrealizáveis.

Pessoas que não respondem ao imperativo da felicidade são repelidas ou patologizadas por se distanciarem das normas de positividade. Reparem que hoje não podemos manifestar nossa inquietude ou nosso incômodo, pois somos diagnosticados com transtorno de ansiedade. Não podemos variar de humor, ou então somos taxados de bipolares. Não ficamos mais tristes ou desiludidos, somos impelidos a tratar a nossa depressão. A felicidade crônica impulsiona a medicalização da vida. "Ser feliz é alvo ideal do fracassado" escreveu o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. A obsessão pela felicidade produz muita infelicidade.

Jorge Miklos, sociólogo, psicólogo e psicanalista, é mestre em Ciências da Religião e doutor em Comunicação.

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