Durante a década de 1980 a classe média criou certa ojeriza com a escola pública. A escola pública, assim como boa parte dos bens públicos, era um equipamento pouco cuidado, quando não quase abandonado, entregue à dedicação de alguns abnegados diretores e docentes.
Para a classe média, relegar o filho a uma educação pública equivalia a reduzir suas chances de ser bem-sucedido na vida adulta. A estrutura era ruim, os professores mal pagos, os outros alunos malcriados. Foi uma época em que a escola particular ganhou um prestígio adicional. Matricular o filho numa escola particular era, para os pais de classe média, uma espécie de grife, um sinal de que a família tinha condições de superar os incômodos da má gestão pública e oferecer uma chance de futuro melhor para os seus. Havia exceções, claro (sempre as há). Mas exceções são exceções.
Entre as escolas particulares adotadas por essa classe média, havia subcategorias. As tradicionais, as modernas, as exigentes, as permissivas (aquelas para onde se dizia que iam os alunos repetentes depois de reprovações seguidas) e afins. Meus pais, enfim se vendo na condição de bancar uma escola particular para o filho único, escolheram por uma razão mais prosaica: era a mais próxima de casa. Assim, fui matriculado no Colégio Dom Bosco, no bairro Ahú, em Curitiba, para cursar o que se chamava então de terceira série do primeiro grau.
Professor de História, Paulo Roberto operou uma pequena revolução na linha de montagem educacional do Dom Bosco. Ele dizia para a gente fechar as apostilas e prestar atenção na aula.
Apesar do nome em homenagem ao sacerdote padroeiro de Brasília, fundador de ordem salestiana, o Dom Bosco não era uma escola religiosa. Sua marca era uma junção do brasão-símbolo da medicina, a serpente no bastão de Esculápio, com a engrenagem, símbolo da engenharia. Isso porque, suponho, o Dom Bosco nasceu como curso preparatório para o vestibular, e deveria ter foco nos concorridos vestibulares respectivos.
Também chamava atenção na marca do Dom Bosco o lema “Seriedade. Competência. Consciência. Dedicação”, inscrito nas pastas e mochilas dos estudantes. Como aluno que fui por nove anos, diria que este slogan representava melhor o espírito daquela escola do que o brasão misturado ou o nome da figura religiosa. O Dom Bosco, aprendi cedo, era um colégio “puxado”.
Se essa expressão não diz muito, tento explicar. “Puxado”, aqui, é sinônimo de “rigoroso”. O Dom Bosco era uma escola que primava pela disciplina de seus alunos, pelo cumprimento de regras e horários, pelo zelo ao uniforme da cabeça aos pés – uma vez um inspetor não deixou uma aluna entrar na escola porque ela vestia um tênis branco da marca Ortopé. Essa marca tinha uma pequena bandeira do Brasil ao lado do nome. Mas, no Dom Bosco, só se podia calçar tênis branco ou azul marinho, sem detalhes de outras cores.
Essa meticulosidade se transmitia também, e talvez principalmente, para seu sistema de ensino. Que deveria ser o carro-chefe do negócio. A cada ano, os alunos recebiam quatro apostilas, uma por bimestre, com todo o conteúdo a ser ministrado (cobrado) de todas as disciplinas naquele período.
Um dia de escola contava cinco aulas de 50 minutos de disciplinas diferentes. Três antes do intervalo para o recreio, duas depois. Ao início de cada aula em sala – que abrangiam todas as disciplinas exceto artes, música e educação física –, os alunos abriam a apostila na seção correspondente à disciplina e aguardavam a exposição. O conteúdo da palestra, via de regra, era uma tentativa de demonstração prática do que estava inscrito na apostila.
Essa foi a lógica até a chegada do professor Paulo Roberto na sétima série.
Professor de História, Paulo Roberto operou uma pequena revolução na linha de montagem educacional do Dom Bosco. Ele dizia para a gente fechar as apostilas e prestar atenção na aula. “Deixem de lado os capítulos, prestem atenção no que digo”.
E o professor Paulo Roberto tinha muito o que dizer. Falava bem e bastante. Tanto que era comum, sem se hidratar (beber água em sala de aula era proibido), ver solidificar-se entre seus lábios um fio espesso de saliva, que o acompanhava durante os minutos finais de aula.
Antes que alguém pense bobagem: o professor Paulo Roberto não queria doutrinar ninguém em sala de aula. Nós, os alunos, nunca conseguimos desvendar suas preferências políticas. Seu método, antes de parecer resistência ao conhecimento pasteurizado da apostila, era o de chamar atenção para o aspecto fantástico da História. Suas provas não eram baseadas na decoreba de textos. Ele exigia que os alunos interpretassem os fatos e discorressem sobre isso.
Esta postura, claro, causava incômodos. Era muito comum que alunos que costumavam ir bem em todas as demais disciplinas tomassem bomba em História com o Paulo Roberto. E, por isso, iam reclamar na coordenação dos seus métodos.
Numa aula logo depois do lançamento de notas do bimestre, quando o desempenho de boa parte da turma ficou abaixo da média, entrou em sala furibundo. Entrou e imediatamente escreveu no quadro negro uma pergunta, em letras garrafais: “Por que vamos à escola?". Olhou para a classe esperando respostas. “Para aprender”, falou um. “Para passarmos de ano”, disse um gaiato. “Para termos conhecimento”, respondeu uma aluna inteligente. Depois de esgotar as respostas dos estudantes, ele próprio respondeu: “Vamos à escola para pensar”. Virou as costas, apagou a pergunta e voltou à aula.
Com o passar dos anos e a experiência de ser aluno de tantos outros professores, entendi que o professor Paulo Roberto nunca tentou ser um revolucionário. Ele não queria contestar os métodos da escola nem revolucionar o ensino de História. Queria apenas lecionar do modo que achava que era mais capacitado a fazer. Foi uma marca na vida daqueles jovens tão inexperientes de tudo. Depois, haveria outros professores, melhores e piores. Mas nunca outro tão marcante quanto o Paulo Roberto na sétima série.
Ricardo Sabbag é coordenador de jornalismo na Gazeta do Povo.
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