• Carregando...

A tecnologia criou o livro infantil digital, em que as imagens são ilustrações interativas, e o texto, não poucas vezes, fica em segundo plano

Em 2009, foram editados no Brasil aproximadamente 390 milhões de livros. Desse total, de literatura infantil são 29 milhões e de juvenil, 27 milhões. Os didáticos atingiram 185 milhões dos livros produzidos. Podemos facilmente deduzir que crianças e jovens são os destinatários mais visados pelo mercado editorial. O número de livros de literatura infantil e juvenil supera em muito a literatura para o público adulto.

Esse panorama numérico torna evidente a importância econômica dessa produção bibliográfica. Há outras razões, no entanto, para que um país de poucos e imaturos leitores como o Brasil apresente números tão elevados numa área delicada e complexa como a da literatura.

O que é um livro infantil? Onde começa sua história? Convido você, leitor, a tentar responder a essas questões. Para isso, é preciso mergulhar de volta ao passado. Pense em sua infância com livros (e até sem eles). Com certeza estaremos falando de diferentes livros se pertencermos a diferentes gerações; bem como diversas terão sido as reações emocionais e afetivas causadas pelo livro infantil. Porque ele está diretamente relacionado ao papel atribuído à infância pelos adultos e, enquanto produto, ao estágio da arte de conceber graficamente e de imprimir.

Com a obra do francês Charles Perrault Contos de Mamãe Gansa (1697), nasceu a literatura infantil aliando o imaginário ao moralismo explícito. O sexagenário autor escreveu histórias que circulavam oralmente, fixou-as numa forma de contar e concluiu os contos com versos direcionados a ouvintes jovens, a quem queria convencer a comportar-se de modo adequado, segundo o desejo dos adultos: obediência, perseverança, honestidade, bondade e virtude modelavam o caráter das personagens. Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, a Bela Adormecida, o Pequeno Polegar são protagonistas exemplares. Sua cota de felicidade se torna merecida quando superam as maldades e enfeitiçamentos que, até hoje, dão sabor e suspense a essas narrativas sobre valores e verdades profundas dos seres humanos. Para coroar esse nascimento literário, a obra mereceu em 1862 a joia maior: a ilustração de Gustave Doré, que fascinou gerações de leitores e ajudou a construir imagens mais concretas de personagens e cenários, mostrando medos, disfarces e alegrias do leitor infantil.

Na atualidade, a visita a uma livraria ou biblioteca encontra livros deitados, perfilados, abertos, envoltos em transparências, nos mais diferentes e, por vezes, esdrúxulos formatos: são os livros infantis. Cores, títulos e formas têm o mesmo apelo das embalagens de biscoitos, sorvetes e chocolates. No entanto, enquanto uns fazem a festa das crianças, outros acumulam poeira nas tranquilas prateleiras. É mais usual a criança receber um brinquedo do que um livro de presente.

Ganhe seu tempo, desavisado consumidor. Abra um livro e redescubra a infância. A beleza gráfica de boa parte desses livros, porém, não é suficiente para seduzir todos os apressados-possíveis-compradores, atraídos pelos potentes reflexos e luzes de eletrônicos colocados sob holofotes dividindo o mesmo espaço com os livros.

Até para eles, a tecnologia criou o livro infantil digital, em que as imagens são ilustrações interativas, e o texto, não poucas vezes, fica em segundo plano, substituído pelo jogo novidadeiro das figuras que ganham vida. Entretanto, como recusar ou menosprezar a versão de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato (que afirmava "ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar") com a extraordinária ilustração de Rogério Coelho? É o livro infantil brasileiro ultrapassando Gutenberg e entrando no espaço digital.

As duas pontas da história do livro de literatura infantil são atadas pelo leitor: de Perrault e Doré aos bites. Diante deles, estão os leitores (muito, mas muito longe dos 29 milhões de exemplares), mas a caminho, seduzidos e conquistados por uma literatura de imaginário vibrante, de alegria contagiante e de nova tecnologia cativante.

Marta Morais da Costa, doutora em literatura brasileira pela USP, é autora de O mapa do mundo: crônicas sobre leitura e Sempreviva, a leitura.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]