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A aviação regional do Brasil não possui um marco regulatório efetivo: há um laissez faire absoluto e cada um que se vire como der, razão pela qual a modalidade praticamente desapareceu do país. Rodovias mal conservadas, malha ferroviária voltada ao transporte de cargas e transporte hidroviário arcaico destacam a urgência da aviação regional como o único modal eficaz para transportar pessoas em um país continental. Comparando exemplos dos Estados Unidos e da Índia, com programas bem-sucedidos de aviação regional, percebe-se que uma abordagem estratégica pode ser a chave para liberar o enorme potencial transformador do setor.
Nos Estados Unidos, o programa Essential Air Services (EAS) ilustra como o apoio estatal pode impulsionar o desenvolvimento da aviação regional, com a garantia do Estado que a operação não será deficitária. A iniciativa garante serviços aéreos em áreas remotas, estimulando a conectividade e o crescimento econômico local. O efeito catalisador da aviação regional sobre as demais atividades produtivas é bem conhecido e quantificável: uma região atendida pela aviação regional gera mais renda, mais empregos e recolhe mais tributos – em resumo: a conta fecha.
Na Índia, há o UDAN – um acrônimo no idioma hindi para “deixe os cidadãos comuns do país voarem”, iniciativa governamental para fortalecer a aviação regional iniciada em 2016. O UDAN é um programa bem mais amplo do que o EAS, objetivando a viabilização das operações aéreas regionais diretamente, a reforma e construção de aeroportos e a redução de impostos sobre este modal. Com isso, o UDAN conecta áreas antes negligenciadas, aumentando a acessibilidade e criando uma rede de transporte aéreo mais integrada. O modelo, adaptado às necessidades da Índia, serve como uma inspiração para o Brasil, apontando a necessidade de políticas customizadas para promoção da aviação regional.
No Brasil, a aviação regular atende atualmente a 170 destinos, dos 3.481 aeródromos existentes, de acordo com os dados da ANAC. Isso revela oportunidades para expandir a acessibilidade aérea em todo o território, em especial nas regiões Centro-Oeste e Norte, as com menos localidades atendidas. Porém, a inexistência de incentivos e de um marco regulatório cria uma lacuna, limitando o desenvolvimento do setor, prejudicando a conectividade aérea em regiões remotas e a promoção do turismo em destinos pouco explorados.
Investir em uma política pública para a aviação regional no Brasil significa investir no progresso econômico e social de localidades isoladas, e somente com incentivo governamental será possível impulsionar o crescimento do setor. O ganho econômico e social disso é enorme! Um primeiro usuário da aviação regional seria o próprio governo, para o transporte de servidores essenciais ao funcionamento do Estado e até mesmo os militares. Depois, há os profissionais do setor privado que irão prover a interiorização de redes de varejo, de insumos agrícolas, de empresas financeiras, entre outros. Tudo isso gera emprego, progresso, qualidade de vida e cidadania para as localidades atendidas pela aviação regional.
Não se trata de subsidiar operações deficitárias para encher o bolso de empresários, mas viabilizar uma atividade que, de outra forma, não teria como ocorrer. Levando-se em conta os custos operacionais por passageiro de uma aeronave de pequeno porte, os custos administrativos de uma empresa com frota reduzida, levando-se em conta que a operação acontece em localidades distantes, o custo da hora de voo da aviação regional torna-se muito superior ao das aeronaves de grande porte que operam nos principais aeroportos.
Ter uma operação lucrativa com um Boeing ou Airbus com voos lotados na ponte aérea até é possível (às vezes nem nessas condições seja fácil!). Mas tente ter lucro com um Caravan que voa com cinco passageiros, em média, no meio da selva amazônica, com uma empresa com meia dúzia de aeronaves. Não é à toa que praticamente não há empresas de aviação regional no Brasil operando nesse formato, exceção feita à Azul Conecta, com um modelo de negócios vinculado à empresa mãe que permite a viabilidade da operação. Além de muito particular, o modelo da Azul Conecta não serve para uma importante função das empresas de aviação regional: serem incubadoras de companhias de grande porte, como foi o caso da TAM décadas atrás.
Em vigor desde 2009, o marco regulatório para a aviação brasileira é a Política Nacional de Aviação Civil (PNAC), com a aviação regional sendo lembrada apenas no último parágrafo, que diz que a política deve ser “constantemente atualizada conforme mudanças no contexto nacional, regional e internacional, garantindo-se que seus resultados sejam adequados às necessidades do Sistema de Aviação Civil”. Nunca houve atualização e mesmo a definição de “aviação regional” não existe. Por isso, precisamos começar pela construção de um marco regulatório para a aviação regional que ofereça estabilidade, incentive investimentos e garanta um ambiente propício ao crescimento sustentável.
Marcos Amaro é empreendedor da Aviação Civil Brasileira; Raul Marinho é diretor técnico da Associação Brasileira de Aviação Geral (ABAG).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos