Quando indivíduos decidem viver em comunidade, é imprescindível que haja um consenso básico em alguns pontos que viabilizam um convívio minimamente harmônico entre eles. Por outro lado, também é preciso que haja discordância, a existência de uma diversidade de ideias, para que as melhores sejam escolhidas para solucionar os conflitos e os problemas que invariavelmente surgem em todo e qualquer local onde há uma união de seres humanos.
Nesse sentido da diversidade de ideias, há uma frase dita pelo cientista político João Pereira Coutinho que está sempre viva na minha memória. O sentido dela, que transmite o fundamento de uma democracia liberal e que deveria ser de conhecimento de todos, é que toda sociedade precisa daqueles que questionam o motivo de uma mudança, o porquê de ela ser necessária, e o que ela trará de positivo para nós; mas também precisa daqueles que questionam o porquê de não haver a mudança e o que o “status quo” nos proporciona de positivo que não justifique a mudança.
Grosso modo, atualmente podemos observar esses dois lados no que se convencionou chamar de “direita” e de “esquerda”, respectivamente, em que cada corrente de pensamento – com as suas ramificações internas – pensará propostas para resolver as questões que fazem parte do nosso cotidiano. Contudo, esse mecanismo, que promove o avanço das sociedades por meio da tolerância e da implementação das melhores soluções para as respectivas situações, torna-se corrompido quando os indivíduos deixam de lidar com o que é expresso pela realidade, passando a enxergá-la através da “lente da ideologia” e de dogmas. Esse, para mim, é o maior defeito da esquerda brasileira.
A esquerda brasileira, infelizmente, é esmagadoramente influenciada por ideais sindicalistas e marxistas, sendo, por conseguinte, extremamente estatista e hostil ao liberalismo (não apenas ao econômico, como também ao que propicia a existência da forma de governo mais benéfica que tivemos, a democracia liberal). Na prática, esses fatos, associados ao seu dogmatismo ideológico, muitas vezes causam um prejuízo enorme justamente àqueles que dizem representar, causando uma contradição evidente entre o que é falado e o que é feito.
Para exemplificar, temos dois casos clássicos. O primeiro é a relação de amor incondicional da esquerda brasileira com qualquer regime autoritário de cunho marxista ou anticapitalista, ao mesmo tempo que dizem defender a democracia e os direitos humanos. Recentemente, vimos a repressão policial às manifestações LGBT e contra o governo em Cuba. De que lado a esquerda brasileira ficou?
O segundo caso é o do Marco do Saneamento, aprovado no último ano pelo Congresso, que prevê o aperfeiçoamento do sistema, com licitações para a contratação das empresas e concorrência entre empresas públicas e privadas, visando a universalização do serviço até 2033. Contudo, como de costume, a esquerda brasileira, quando ouve “empresa privada”, se arrepia e começa a se manifestar contra. Afinal, a sua ideologia diz que apenas o Estado deve atuar na área, que o empresário é contra o povo, e assim sucessivamente, não importando se a medida beneficiará ou não a população. Disseram até que o projeto iria “privatizar a água”.
Outro aspecto negativo que podemos citar na esquerda brasileira é arrogância, a soberba com que trata os temas de teor social, pois acredita ser a única e legítima defensora daqueles que estão “sob sua guarda”. Todos os outros são “contra a classe trabalhadora”, “burgueses” ou alguma palavra terminando em “ista”. É o mesmo discurso utilizado pela esquerda no início do século passado. É impressionante! Não há evolução, mas uma estagnação dogmática quase inexplicável, a não ser pela fé ideológica.
Essa é a mentalidade que resulta na segregação da esquerda moderna, não marxista e pragmática, que atua de acordo com as circunstâncias que se fazem presentes no século 21. Ela é representada por pessoas como Eduardo Jorge, Fernando Gabeira e Tabata Amaral, que são constantemente jogadas para a direita do debate público por ter outras soluções para os problemas atuais que não sejam as que vêm falhando há cerca de 100 anos. Infelizmente, repito, a esquerda brasileira rejeita medidas e princípios que são fundamentais em uma sociedade contemporânea.
Pautas econômicas, como a austeridade fiscal e limitação da atuação do Estado, podem caminhar lado a lado com o combate à desigualdade econômica. Questões que envolvem o combate a discriminações podem ser resolvidas sem que haja a criação de uma tensão bélica “que dita o rumo da história”, por assim dizer, entre os indivíduos. Regimes autoritários devem ser execrados, independentemente de serem de esquerda ou de direita. A esquerda moderna já percebeu e incorporou isso. No entanto, a esquerda brasileira permanece no atraso. E esse atraso não prejudica apenas a esquerda, que continua estagnada na agenda do passado, como também prejudica o resto da sociedade, pois precisamos de um debate público de alto nível para superarmos os nossos problemas, com propostas virtuosas tanto à direita quanto à esquerda.
Gabriel Menezes Dantas é estudante de Medicina e articulista.
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