Há mais de 10 mil anos a humanidade iniciou o processo de domesticação de plantas e animais e, com isso, o nomadismo cedeu lugar ao sedentarismo. Esse conjunto de transformações nos hábitos dos humanos é denominado Revolução Agrícola.
Antes da Revolução Agrícola, quando os humanos percorriam diariamente grandes distâncias para as atividades de caça e de coleta, os membros que não tinham condições de acompanhar o grupo eram deixados para trás. Exceto com as crianças, isso ocorria invariavelmente com os incapazes, como os idosos e os que tiveram algum tipo de trauma: sem a condição física necessária e sem também os elementos para a sobrevivência, os abandonados morriam.
A Revolução Agrícola mudou drasticamente o comportamento dos humanos. Depois dela, eles se fixaram em locais aptos ao cultivo e à criação de animais, e construíram abrigos permanentes. Com isso puderam abandonar os longos trajetos percorridos diariamente. Nessa nova condição, idosos e incapacitados tiveram um grande alento, pois, assim que perdiam sua capacidade de trabalho, não eram mais abandonados sob a sombra de uma árvore qualquer, mas recebiam em um abrigo os cuidados elementares até o momento final. Esses cuidados elementares eram fornecidos pelos membros diretos da família, como irmãos, filhos, sobrinhos e netos. O cuidado com os idosos e incapacitados no ambiente familiar é o embrião do atual sistema previdenciário: a geração capaz cuida da geração incapaz.
É possível a existência do modelo de capitalização, que deve necessariamente coexistir com um sistema público
Mais recentemente, e após tantas mudanças de ordem social, como a nova Revolução Agrícola na Idade Média, a consolidação do comércio, a formação dos Estados-nação, o surgimento do capitalismo e as várias Revoluções Industriais, a forma de cuidar da geração mais antiga e dos inválidos continuava essencialmente a mesma: a geração mais nova e capaz é responsável pela geração mais antiga.
Decorrente de todas essas transformações, surgiu uma nova organização da sociedade, mais urbana e industrial, o que levou à criação de um sistema que pudesse fornecer os recursos às pessoas que perderam ou nunca tiveram capacidade de trabalho. Esse sistema é justamente o sistema previdenciário. Sua característica se assenta no fato de que os recursos são gerados coletivamente e não individualmente. Um dos primeiros foi adotado na Alemanha após sua unificação: no ano de 1880, Bismarck formulou um sistema, de eficácia questionável, em que a aposentadoria ocorreria aos 70 anos, dez anos a mais que a expectativa de vida da população alemã naquele período histórico.
No Brasil, as primeiras iniciativas previdenciárias são da década de 1920, mas foi na década de 1960 que se constituiu o modelo vigente; um modelo em que a geração atual e com capacidade de trabalho contribui para o sistema. Essa contribuição é justamente destinada aos pensionistas. Portanto, nesse modelo, a geração atual oferece os recursos à geração anterior. E, por várias razões, o modelo vigente necessita de atualização.
Estando agora avançada a reforma da Previdência, outros modelos alternativos têm sido aventados, incluindo o de capitalização. No modelo de capitalização, o interessado tem uma conta em uma instituição financeira, a qual se responsabiliza por administrar os recursos depositados e, no momento pactuado, realiza os pagamentos.
Esse modelo, embora defendido por alguns agentes econômicos, não tem se mostrado melhor do que o tradicional. Turbulências no mercado, como crises, ou mesmo a má administração do fundo podem corroer todo o ganho esperado e condenar os submetidos a esse sistema a graves problemas financeiros.
O sistema de capitalização foi adotado no Chile ainda na década de 1980 e fortemente elogiado pelo FMI. Após quase quatro décadas, o que se pode observar em nossos vizinhos é uma desestruturação da previdência a tal ponto que o país é o líder na América Latina em uma estatística mórbida: o suicídio de idosos que não conseguem se manter com o mísero valor recebido pelas aposentadorias – no caso chileno, o sistema de capitalização possibilita para alguns o retorno a um período ancestral, quando eram alijados precocemente da sociedade.
O contexto histórico nos faz perceber como essencial a atualização do sistema previdenciário, mas deve-se adotar um sistema que seja essencialmente inclusivo e que não propicie privilégios a nenhuma classe social. E, independentemente do sistema e das regras específicas para a previdência, sempre é a geração presente que arca com os custos de manutenção da geração passada. Por exemplo, suponha que alguém, ao longo de sua vida, tenha acumulado uma grande quantidade de imóveis, os quais, por meio do aluguel, gerariam os recursos financeiros para a velhice. Mas se, por alguma razão, a geração atual não tiver interesse em locar tais imóveis, todo o investimento realizado ao longo de uma vida de trabalho se tornaria inócuo. Da mesma forma ocorre com o mercado de ações: se toda a riqueza de alguém estiver convertida em ações, a remuneração de tais ações dependerá da intensidade de crescimento das empresas, que será um desdobramento da capacidade econômica da nova geração em gerar prosperidade.
Dada a complexidade da sociedade brasileira, é possível a existência do modelo de capitalização, que deve necessariamente coexistir com um sistema público, abrangente, inclusivo e universal. Caso contrário, estaríamos promovendo um retrocesso social por meio da condenação de pessoas fragilizadas à miséria existencial. E, sobre esse tema, o governo não deve sucumbir a modismos ou a argumentos de agentes que não tenham o comprometimento com toda a sociedade.
Rodolfo Coelho Prates é doutor em Economia e professor do curso de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.