Para quem, em conformidade com os sismólogos daqui, acreditava que o Paraná estivesse distante da rota das intempéries devastadoras, à semelhança dos terremotos que assolaram o Haiti e o Chile, as últimas notícias publicadas nesta Gazeta do Povo mostraram exatamente o contrário. São matérias em estado incandescente. A série de reportagens veiculadas sob o título "Diários Secretos" descortina que mais da metade (56,7%) de todos os atos oficiais da Assembleia Legislativa do Paraná entre 2006 e 2009, incluindo nomeações e demissões de servidores, não foram contemplados com a devida publicidade, isto é, foram impressos em edições avulsas, impedindo qualquer tentativa de consulta por parte do cidadão.
Essas notícias nos remetem a um período de nossa história política em que o sigilo era a regra, e o medo, uma forma de preservação da integridade física. Há pouco mais de quarenta anos, vivemos o que Elio Gaspari cunhou como "a maior farsa até então registrada no Brasil" (A ditadura escancarada, Cia das Letras, p. 80). Em agosto de 1969, o general Costa e Silva, então ocupando a Presidência da República, foi acometido por uma isquemia cerebral, com sequelas severas e irreversíveis. A farsa consistiu em manter em sigilo o estado de saúde do presidente, de modo a viabilizar a sucessão que mais agradasse à cúpula do poder. Assim, surgiu a ideia de se buscar o nome do sucessor de Costa e Silva através do sufrágio de um colégio eleitoral improvisado, formado pelos membros do Alto-Comando das Forças Armadas, que era composto por sete generais (os três ministros fardados, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e os três chefes do Estado-Maior de cada uma das Forças, seguindo a ordem hierárquica castrense). Segundo Gaspari, foi concebido o seguinte procedimento eleitoral: "cada membro do Alto-Comando deveria recolher três nomes entre seus subordinados através de um processo de auscultação. Não se definiram quais os oficiais seriam auscultados, muito menos a metodologia pela qual se faria isso. Nem sequer se esclareceu o que se faria com a listra tríplice." Desse modo, através de uma ponderação esquizofrênica, o Alto-Comando chegou ao nome de Emilio Garrastazú Medici, ex-chefe do SNI e comandante do III Exército, sediado em Porto Alegre. Sobre esse episódio caricaturável dos anos de chumbo, arremata Gaspari, com fina ironia: "Transformado em colégio eleitoral para a escolha de um presidente da República, o Alto-Comando do Exército fizera uma surpreendente descoberta. Pelos seus critérios, os generais (...) não sabiam votar". Possivelmente, naquela época, os generais seguiram a advertência, atribuída a Winston Churchill, para quem, "em tempo de guerra, a verdade é tão preciosa que ela precisa ser guarnecida por uma escolta de mentiras".
Os documentos que registraram o resultado do processo de escolha promovido pelo Alto-Comando (diversas folhas manuscritas) foram doados pelo general Antonio Carlos Muricy aos arquivos da Fundação Getulio Vargas. Se em 1969 a população brasileira nem imaginava como estava sendo cozida a indicação do próximo presidente, hoje os documentos, então sigilosos, estão à disposição para consulta, ao contrário dos diários secretos de nossa Assembleia Legislativa. Passados mais de quarenta anos da isquemia de Costa e Silva e da ascensão de Medici à Presidência da República, fica a dúvida, diante da série de reportagens publicadas por este periódico, se conceitos como coisa pública, representatividade política e transparência administrativa são institutos sedimentados em nossa democracia ou meras figuras de retórica.
Se imaginarmos o estado do Paraná como uma casa, é razoável atinar que cada paranaense teria o cuidado em guardar a entrada principal de sua morada. É exatamente isso que faz diuturnamente a Procuradoria-Geral do Estado, ao não deixar que saia nada dessa casa sem que haja um motivo justo. (Em fevereiro passado, foi noticiada a vitória da PGE, no caso da indenização em favor da C. R. Almeida, que representou uma economia ao estado de mais de R$ 18 bilhões).
Resta a pergunta: de que adianta nós, procuradores do Estado, guardarmos com atenção a entrada principal da nossa morada, se alguém sorrateiramente deixa uma janela escancarada em um dos cômodos? Afinal, não é outra a sensação de quem acompanha a corajosa e necessária cruzada empreendida pela Gazeta do Povo: a de que estamos sendo assaltados por mãos que não se mostram à luz do dia.
Joaquim Mariano Paes de Carvalho Neto é procurador do estado do Paraná
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