Até hoje me lembro da capa do livro. Inocência, de Visconde de Taunay. Eu tinha não mais que 9 anos, mas peguei o livro na biblioteca atraída pela capa e pelo título. Fiquei intrigada se “inocência” era um nome ou uma característica. Fui envolvida pela narrativa e devorei o livro. Depois dele vieram muitos outros e alguns da saudosa coleção vagalume. “Sozinha no mundo”, de Marcos Hey, sempre foi o meu preferido. O reli várias vezes. Talvez porque este fosse meu, - meu pai havia me dado de presente - talvez porque me fizesse chorar.
Depois de Inocência, um livro para “adultos”, tornei-me uma devoradora de livros. E sempre preferia os que podiam me fazer vivenciar fortes emoções. Se me faziam chorar então… e poesia… sempre me encantou a linguagem e o olhar poético. Era como se a cada leitura eu pudesse aprender mais sobre mim, sobre as emoções e sobre as pessoas. E então, de observadora de pessoas, passei a leitora de pessoas. Por meio dos livros eu lia mais que o mundo. Eu lia a mim mesma. Quanto aos livros de terror ou livros fantásticos. Nunca gostei. Prefiro manter contato com eles por filmes. Isso significa que o contato com todos estes diferentes gêneros literários me mostraram, desde cedo, o modo como eu gostava de ler literatura. Foi assim que aprendi os conteúdos com os quais eu melhor podia me relacionar.
Este discurso todo já deixa claro o meu posicionamento quanto aos rótulos que impomos aos livros. O que não significa que não deva ser respeitada a etapa de aprendizagem da criança. Inicialmente, a faixa etária foi incorporada aos livros como forma de orientar aos mediadores no trabalho da literatura com crianças, justamente para nortear aqueles que desconhecem os códigos próprios da literatura. No entanto, o que antes servia para orientar, acabou por ditar o que as crianças devem ler e muitos bons livros se perderam na própria faixa etária. Deste modo, a própria concepção do produto o coloca dentro de uma das gavetas que ele mesmo criou.
A reação de muitos – editores, autores, ilustradores, educadores – frente à rigidez das faixas etárias leitoras indicadas nos livros decorre deste processo de reflexão sobre o livro infantil, assim como de uma tendência contemporânea marcante onde o livro ilustrado se impõe, rompendo a barreira das idades. Não é de hoje que uma reação a tais rótulos se verifica.
Não questiono a importância da orientação dos pais e dos professores no que se refere ao papel de mediadores de leitura. Muito pelo contrário. O mediador é quem faz com que o leitor, ainda sem autonomia, dê conta dos conteúdos na relação livro e leitor, mas desaprovo critérios que limitem o leitor a estabelecer relações com suas vivências de mundo. O processo de aquisição de conhecimento se dá por intertextualidade, de modo que não há limites para que esferas do conhecimento sejam acessadas por ele, desde que este seja capaz de relacionar os textos conhecidos a fragmentos de outros textos que lhe são incorporados. Deste modo, uma criança que tenha tido acesso a determinado texto pode, sob esta perspectiva, ler e fazer a aquisição de novos saberes, e para isto, não acredito existir limite.
A adoção de faixas etárias para indicar os leitores de um determinado livro, além de promover uma nivelação que pode ser injusta, reduz e limita a vida e a abrangência dos livros. A diversidade dos níveis leitores entre os leitores de uma mesma idade, seja pelas diferenças de escolaridade, culturais ou econômicas já puseram por terra a adoção de faixas etárias há algumas décadas. A sobrevivência das faixas etárias, tal como persiste hoje, atende à exigências do mercado escolar. Por isso, apoio e acredito numa conceituação, não mais por idade, mas por nível de aprendizado da leitura. Os denominados leitor em alfabetização, leitor iniciante, leitor intermediário e leitor avançado. O desejável é que a criança dê conta do conteúdo a ser apreendido.
Selecione os livros de acordo com o conteúdo e nível de leitura
Apesar de acreditar e defender a flexibilização das faixas etárias por conta dos diferentes níveis de aprendizado da leitura, vale lembrar que não é a própria criança quem definirá os conteúdos capaz de dar conta, mas o mediador. O qual deve estar atento à abordagem dada aos conteúdos que envolvam forte violência, preconceitos, sexualidade. Porque a leitura é mais que um passatempo, é um modo de aprendizado. E, como tal, necessita respeitar as etapas de desenvolvimento infantil. Inclusive, da formação de valores. O que é bem diferente de censurar o conteúdo, mas de preservar a criança de demandas às quais ela não demonstra interesse natural ou específico. Respeitar a curiosidade e aprendizado natural da criança, em vez de bombardeá-la com conteúdos que eu adulto considero importante serem abordados.
Deste modo, pensando do ponto de vista do mediador que orienta, indica e sugere a leitura para leitores ainda sem autonomia, o melhor critério deve ser a sua identificação com o livro, a sua capacidade de promover e dar conta de uma conversa entre livro e leitor. Isto é, de levar ou acompanhar a imaginação do leitor para onde as páginas do livro levarem, sem medo dessa viagem desconhecida que nenhum critério pode, previamente, estabelecer ou limitar.
Esses leitores, que estão em fase de formação, de descoberta e de construção de critérios e de seu gosto literário precisam ter contato com diferentes narrativas literárias. Contudo, é necessário cuidar de abordagens que preservem e até mesmo estimulem o natural, belo e inocente aprendizado infantil. Permitamos que a leitura os envolva. Que ao devorarem seus livros, sejam devorados pelo próprio gosto de ler. E aprendam mais sobre a leitura e escrita, sobre si mesmos, sobre o mundo.
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