Idosos com 68 anos completos ou mais que tomaram a segunda dose até 3 de maio poderão receber a dose de reforço na próxima quarta-feira (3).| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
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Em 1.º de novembro, pleno dia-ponte de feriado, o ministro do Trabalho, Onyx Lorenzoni, publicou uma portaria em edição extra do Diário Oficial “resolvendo”, dentre outras coisas, que é vedado ao empregador exigir comprovante de vacinação para contratação e manutenção de emprego e que esse tipo de conduta seria discriminatória. Trata-se de verdadeiro delírio jurídico que nasce morto formal e materialmente.

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A primeira coisa que se nota na portaria é a sua pretensão de colocar a exigência de vacina no meio de outras condutas, essas sim, discriminatórias, como exigência de negativa de reclamatória trabalhista e teste de gravidez, entre outros. Parece-nos que o ministro tenta enganar o interlocutor, colocando em pé de igualdade comportamentos distintos em natureza e finalidade.

Trata-se de verdadeiro delírio jurídico que nasce morto formal e materialmente.

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A segunda é o objetivo legiferante da portaria. Embora pareça mera tecnicalidade jurídica, atos de um ministro de Estado não podem criar deveres, obrigações ou interpretações legais, sob pena de quebra do princípio da separação dos poderes. As portarias têm finalidade apenas de regulamentar leis quando estas autorizam ou delegam tal poder ao ministro. É o Legislativo que cria as leis e o Judiciário que as interpreta; nesse caso, a portaria viola o artigo 22, I, da Constituição Federal.

O artigo 200 da CLT, aliás, prevê quais as “disposições complementares” que o ministro do Trabalho pode estabelecer no que diz respeito a saúde e segurança do trabalho – e “interpretar” a Lei Benedita da Silva (9.029/95) não está dentre elas –, delegando-lhe o poder de determinar níveis de tolerância e normas técnicas para o labor em determinados setores, o que é materializado pelas normas regulamentadoras. O inciso V desse artigo deixa claro que o ministro deve estabelecer disposições sobre “profilaxia de endemias”; noutras palavras, não só a portaria cria disposição legal de forma irregular (ou seja, inconstitucionalidade formal), como também contraria o texto celetista, uma vez que não se imagina que “proteger” os renitentes à vacinação seja lá muito benéfico para o controle da pandemia.

O ato também criaria – usaremos doravante o pretérito imperfeito, considerando a aberração jurídica da portaria – a possibilidade teratológica de profissionais de saúde recusarem-se a tomar a vacina. Noutras palavras: aqueles que mais têm contato com o coronavírus poderiam espalhar livremente o agente.

Apesar de a portaria pinçar alguns dispositivos constitucionais, apontados de forma descontextualizada e absurda, ela também é materialmente inconstitucional. Viola o direito coletivo à saúde (artigo 196 da Constituição), ao meio ambiente equilibrado (artigos 225 e 200, VIII), além do entendimento do Supremo Tribunal Federal de repercussão geral sobre o assunto, de que é constitucional a previsão da Lei 13.979/2020 no sentido de que a vacinação pode ser realizada de maneira compulsória.

Não nos estenderemos sobre o assunto nesse artigo por questões de concisão, mas o “direito individual” exaltado pelo ministro Onyx choca-se com o pacto coletivo e social representado pela vacinação. Há vários direitos civis, aliás, que só são exercidos com a vacinação própria ou de terceiros: vários países exigem certificado de vacinação para aceitar estrangeiros, escolas exigem vacinação para matrícula de crianças, os beneficiários do Bolsa Família precisam manter a carteira de vacinação de suas crianças em dia.

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Ainda que assim não fosse, o artigo 8.º da CLT prevê que, na ausência de disposições contratuais e legais sobre algum assunto, as autoridades administrativas decidirão “pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito (...) mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”. Mais claramente: não há “direito individual” no Direito do Trabalho quando este contraria o interesse público.

Nesse sentido, é até legalmente possível que algum indivíduo se recuse a tomar a vacina, quaisquer que sejam seus argumentos, por mais ilógicos, excêntricos e lunáticos que sejam. Entretanto, ele não poderá manter-se em sociedade ou qualquer contrato de trabalho com empresa ou com o poder público, pois esse direito não se sobrepõe ao direito dos seus colegas e clientes de usufruírem um ambiente sadio e livre de agentes biológicos que levam risco à vida.

Não bastasse isso, a portaria se choca com norma regulamentadora do próprio ministério. A NR-32, de 2004, já prevê a vacinação de trabalhadores. Por mais que trate de outras doenças, os seus princípios são extensíveis à vacinação contra a Covid-19, uma vez que menciona as vacinas disponíveis no Sistema Único de Saúde e a possibilidade de o empregador incluir a obrigação de vacinação no seu Programa de Controle Médico e de Saúde Ocupacional.

O ato do ministro Onyx Lorenzoni soma-se ao extenso rol de ações e omissões do governo federal na gestão da pandemia. O estímulo aos “antivax” vai além das inconstitucionalidades e ilegalidades acima demonstradas, mas é compreensível ante os absurdos de um governo que permitiu o morticínio de mais de 600 mil brasileiros e que ignora a clara relação entre a diminuição de mortes e a vacinação.

Como se vê, a Portaria de Todos os Santos parece-se mais com uma de Finados.

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Fabio Augusto Mello Peres é advogado com atuação na área trabalhista, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo, e integrante da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/PR.