O governo federal escolheu o lado errado na cruzada para evitar que o menino João Hélio morra pela segunda vez com a vitória da impunidade. O pronunciamento do presidente Lula na véspera do carnaval ao afirmar que a diminuição da maioridade penal poderia chegar à condenação de fetos foi insensível, simplista e beira a leviandade.
Se o governo encampou a convicção do seu quase ex-ministro Márcio Thomas Bastos de que está no caminho correto na luta contra a violência, não precisava agredir a família enlutada e os milhões de brasileiros (sobretudo brasileiras) solidários com a tragédia dos Vieites. A metáfora foi rasteira, fruto talvez da sua obsessão em imaginar-se num eterno palanque. Qualquer que sejam os atenuantes psicológicos da manifestação presidencial, a verdade é que o chefe da nação aferra-se aos sofismas que lhe sopram nos ouvidos e, com isso, enfia-se num bunker impermeável aos sentimentos dos milhões de concidadãos que simplesmente estão com medo medo de que as coisas só mudarão para pior. Foi contestado abertamente pelos pais de João Hélio.
João Cândido Portinari, filho do nosso pintor maior, foi na direção contrária: algo precisa ser feito já. Se os corações e mentes das autoridades estão embrutecidos pelo jogo político, o caminho será a desobstrução das almas. Optou pela comunhão e pela comunidade: abriu mão dos direitos autorais de 5 mil obras do acervo que está sob sua guarda desde que sejam utilizadas em mensagens contra a violência. Começou com um e-mail dirigido a 2 mil pessoas, logo ganhou as primeiras páginas dos jornais e destaques nos telejornais. Em poucos dias, converteu-se num ícone de solidariedade.
Desenhos e esboços para o mural "Guerra e Paz" que está há mais de meio século na sede da ONU serão capazes de melhorar o mundo? A "Pietá" de Michelangelo, na qual Portinari inspirou-se para alguns detalhes, foi esculpida há mais de 500 anos e mudou coisas essenciais na história da humanidade.
E nossa humanidade pode ser decisivamente alterada pelos traços trágicos do artista de Brodosqui. Se a violência só pode ser enfrentada como um processo (como apregoam o ministro da Justiça e seus acólitos), este processo precisa ser constantemente ativado por altas doses de emoção e humanidade. E não foi humanidade que o presidente Lula destilou ao mencionar os fetos. Prometer o fim da violência para quando as escolas que começarão a ser construídas receberem todas as crianças do país é um truque ideológico simplório.
Neste ponto o presidente Lula lembra o seu colega da Casa Branca, que se recusou a assinar o Protocolo de Kyoto em defesa do meio ambiente porque acreditava que o processo econômico sozinho seria capaz de corrigir as distorções e agressões à Natureza.
Processos sociais, políticos, econômicos e até mesmo existenciais não são como os giroscópios, instrumentos automáticos, duradouros e infalíveis, ao contrário, são constantemente confrontados por processos contrários e às vezes mais fortes. O homem dos palanques Lula não tem obrigação de conhecer os princípios elementares da dialética hegeliana, mas o jurista Bastos não poderia ignorá-la.
O tal "processo" alegado pelo ministro Bastos na sua infeliz entrevista à Folha nesta sexta lembra aquele outro processo inventado por Kafka, construção absurda, verdadeira caricatura do engenho humano. Parecida, aliás, com as teorias do incrível repórter Borat cujo non-sense começa a ser exibido nas telas de cinema do país.
O processo Portinari oferece uma alternativa generosa ao processo messiânico de Lula: tenta agregar, reunir os desgarrados, procura oferecer tarefas coletivas justamente para evitar o vácuo e a solidão onde fermentam os revanchismos.
Adiar mais uma vez a composição do ministério para março, como anunciou o presidente Lula, é um mal menor se comparado com o adiamento "sine-die" das nossas esperanças por um país melhor.
Alberto Dines é jornalista.
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