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Pós-humanismo, o novo anti-humanismo
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Um dia desses, resolvi assistir, num conhecido canal de história da televisão, a um especial sobre o pós-humanismo. Curioso notar que, à semelhança de todos os fenômenos anunciados e datados do século 20, como a superpopulação ou o neomaltusianismo, o especial tematizado já antevia a resolução de inúmeros problemas sociais e o advento do novo homem lá pelos idos de 2050.

Fiquei muito feliz com o ano, porque tenho grandes perspectivas de estar vivo para ser testemunha de mais outro fenômeno anunciado, datado e não realizado. O pós-humanismo é um movimento que visa mudar a mente e o corpo do homem pela biotecnologia, a fim de aprimorar suas habilidades e até lhe dar outras novas. Eu, sinceramente, gostaria de ser um pouco mais alto. Ajudaria bastante na disputa do rebote dentro do garrafão ou na subida de rede no saque-e-voleio.

Embora os objetivos últimos do pós-humanismo tangenciem a utopia, eles podem influenciar a realidade, porque promovem uma aplicação ilimitada da biotecnologia ao ser humano e mesmo uma mentalidade de rejeição das limitações e sofrimentos naturais que condicionam nossas atitudes em relação aos doentes e às pessoas com deficiência. E por quê?

Porque é um movimento cultural, científico e intelectual que considera um dever ético melhorar as capacidades do homem, sejam elas de natureza biológica, psicológica ou moral. Essa melhoria é justificada por vários propósitos, alguns úteis para o homem, como a eliminação da dor e do sofrimento associados a doenças e envelhecimento, e outros bem caricaturescos, como a melhoria de nossas sociedades pela eliminação de comportamentos inadequados e a possibilidade de imortalidade.

A linguagem pós-humanista é composta por uma gramática utilitária e, por isso, é muito importante debater os termos daqueles aprimoramentos, no sentido de se saber onde termina a ação terapêutica e onde começa a modificação do ser humano. Em outras palavras, quais aspectos podemos considerar desumanos e, portanto, que devem ser eliminados, e quais, por respeitarem a dignidade da pessoa humana, devem ser mantidos.

Basicamente, devemos, no fundo, perguntar o que é o homem e o que queremos que ele se torne. Um questionamento não só para a antropologia filosófica, mas uma hesitação sobre nós mesmos e que bate às portas de nossa consciência, porque os interrogativos que daí sucedem tocam diretamente a todo nosso ser, a nossa origem e ao nosso fim último.

Acerca do homem, a abordagem pós-humanista não aceita uma identidade humana com seus limites e condicionamentos. Seus defensores defendem a construção de um futuro em que o homem não tenha certas privações e ainda goze de capacidades altamente aprimoradas, quando não a possibilidade de novos seres diferentes que transcendam o próprio homem.

Portanto, não se trata apenas de uma melhoria em muitas limitações de nossa espécie, mas uma recriação ou um redesenho do homem realizados pelo próprio homem, auxiliado pela ciência e pela técnica. Não é a valorização daquilo que consideramos positivo no homem, mas a possibilidade de se propor, como objetivo, um ser híbrido ou completamente diferente do ser humano.

O pós-humanismo seria articulado em várias fases, na medida em que os meios necessários se tornassem disponíveis. Em resumo, podemos dizer que as medidas seriam de natureza eugênica (eliminação de embriões ou fetos com anomalias congênitas), nanotecnológica (implantação de "microchips") e terapêutica (uso de drogas para a potencialização de habilidades ou eliminação de aspectos negativos da personalidade).

O manejo da terapia genética também é considerado, não apenas para a cura de indivíduos, mas também para a produção de mudanças estéticas na prole. Da mesma forma, o pós-humanismo visa transcender os limites humanos da temporalidade, com propostas para uma existência pós-biológica, por meio do despejo do cérebro de um homem num computador ou a conformação de uma realidade híbrida, parte orgânica e parte cibernética. Nem Matrix teria um enredo melhor.

Em todas as propostas, o corpo é um mero instrumento e, com isso, resta claro que o pós-humanismo supõe uma concepção antropológica materialista, como se dá no evolucionismo e no estruturalismo. Essa visão é reducionista do ser do homem, porque, ao partir do dualismo de natureza cartesiana, o indivíduo é definido apenas por seus estados de consciência, especialmente aqueles ligados ao exercício da razão.

Mas não é só. Tal concepção reduz a essência humana, considerando que o dado corpóreo não compõe sua definição e que o respeito ao homem está estritamente ligado ao exercício efetivo da racionalidade. Se a isso se acrescenta a concepção contemporânea de uma liberdade emancipada e criativa da própria natureza humana, sem limites e com base em eleições existenciais sucessivas, o pós-humanismo parece ser, definitivamente, a cereja no bolo da refundação do homem pelo próprio homem. Prometeu ficaria com inveja.

Por outro lado, a razão instrumental, que norteia o pós-humanismo, encontra elementos de resistência no próprio ser humano. Os caprichos da vontade, alçada como motor do processo de reengenharia humana, encontrariam limites associados à condição do corpo humano. Seria necessário, então, obter mais possibilidades de escolha, porque a liberdade teria chegado a um limite, correspondente ao de nossa estrutura biológica.

O que se faria? A resposta seria simples: mudar essa corporalidade, imperfeita e oprimida pela natureza, ao nosso bel prazer. Em suma, manipular o dado mental sobre o corporal, no afã de se tirar o máximo proveito do corpo em prol de uma felicidade pautada pelo bem-estar sensível ou afetivo.

O pós-humanismo radicaliza e leva, às consequências finais, os postulados do cientificismo e, assim, a atividade científica alcança, sob essa perspectiva, a total autonomia em relação à ética personalista. Em seu lugar, centraliza a vida ética do indivíduo em sua autonomia que, lastreada na visão dualista cartesiana, concebe-a como uma consciência livre que se constrói de acordo com critérios que ela atribui a si mesma, sendo o dado corpóreo o propício campo de atuação emancipatória desse eu.

O projeto da modernidade de moldar um novo homem já era um tanto presunçoso, mas, pelo menos, o homem ainda existia. Com a cegueira da pós-modernidade, a situação torna-se mais crítica: não há mais homem e o que vale é o anti-humanismo mais evidente, pois é impossível reafirmar o homem, como propõe o pós-humanismo, se seus postulados partem de uma negação radical da essência do próprio homem.

André Gonçalves Fernandes, Post-Ph.D., é juiz de direito, professor-coordenador de filosofia e metodologia do direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp, professor-visitante da Universidade de Navarra e membro da Academia Campinense de Letras.

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