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Pouco a pouco, os prazeres sensoriais passaram a ser tratados como algo que demanda abordagens intelectuais e classificados por escalas supostamente objetivas, que procuram estabelecer rankings de qualidade em um terreno dominado pela subjetividade

Millôr Fernandes, nas suas Lições de Um Ignorante, desfia suas frustrações: seus amigos sempre leram mais livros do que ele, estão mais a par dos restaurantes da moda, conhecem mais pessoas ilustres, e por aí vai. Tenho um sentimento parecido quando leio um comentário sobre vinhos. Sou absolutamente incapaz de identificar quando o vinho é "frutado confeitado a ameixas pretas, [com] algo de marmelos, cacau e baunilha"... ou quando ele tem "ares franceses" como escreveu um especialista recentemente.

Vinhos, hoje em dia, apresentam características antropomórficas: um "esbanja juventude", outro é "vivaz e pujante", enquanto que para alguns cabe a qualificação de "jovial" e "exótico". Já li comentários de que o vinho é arrogante, imaturo, quase adolescente, indeciso e, se não me falha a memória, um deles era rotulado como cabotino e pretensioso. É verdade que não sou um bom juiz, depois de 20 anos de voluntária abstinência, quebrada agora, vez por outra, por determinação médica do Dr. Pasquini que me prescreveu uma taça de Brunello de Montalcino para a saúde das coronárias, mas mesmo no passado nunca consegui experimentar sensações parecidas com as dos especialistas.

Com o café, opera-se agora o mesmo processo de intelectualização: finalmente, começamos a tomar cafés decentes no Brasil, depois de décadas bebendo varredura de armazéns, misturada com chicória e cafés de última qualidade guardados em armazéns de beira de cais. Hoje em dia, pode se encontrar cafés especiais preparados com grãos selecionados, mas daí a ter de ler menus de café em que cada variedade é descrita com requintes de uma tese de doutorado, vai distância considerável: o Nicaraguá (assim mesmo, oxitonado), o Costaricá e o Moká d’Etiopie são apresentados como nectares mitológicos , com direito a análises sociohistóricas e antropológicas e testes degustativos que identificam até o tipo de estrume que adubou o pé da planta.

E assim, pouco a pouco, os prazeres sensoriais passaram a ser tratados como algo que demanda abordagens intelectuais e classificados por escalas supostamente objetivas (95 pontos no Wine Expectator...) por cognoscenti, que procuram estabelecer rankings de qualidade em um terreno dominado pela subjetividade. Subjetividade que ficou clara no caso da indústria vinícola da Califórnia quando procurava se afirmar no mundo 20 ou 30 anos atrás; os vinhos californianos eram sistematicamente derrotados pelos franceses quando comparados em degustações de especialistas. Mas havia um detalhe: as degustações eram feitas de maneira aberta, com os juízes conhecendo a origem dos vinhos experimentados. Quando passaram a ser feitas sem que a origem fosse previamente conhecida, alguns vinhos do Napa Valley logo se afirmaram entre os melhores do mundo derrotando algumas vacas sagradas francesas.

Agora, descubro que minha ignorância se estende à comida. Vejo na imprensa que um quilo de Kobe Beef pode custar R$ 1,6 mil e que a iguaria invade o cardápio dos restaurantes. Definitivamente meu paladar não é nem minimamente refinado para me permitir pagar tanto por um bife e só lamento que, quando como inexcedível honraria durante uma viagem ao Japão, me serviram um filé feito com a celebrada carne de Kobe, eu não soubesse que era tão caro, pois se soubesse, teria fotografado para mostrar aos amigos e aos desafetos na minha volta. Mas no caso da comida, sou salvo por um conhecedor real da gastronomia e de seus prazeres, o professor Carlos Roberto Antunes, que, em comentário recente, mostrou o absurdo cometido por chefs modernosos que eliminam os pés, orelhas e rabos de porco nas feijoadas para buscar a pedra filosofal dos que têm problemas com colesterol: a feijoada light, uma contradição absurda. Ainda mais quando se sabe que uma feijoada realmente completa é aquela que tem uma ambulância de prontidão no local da festa.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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