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Anos atrás, um amigo me disse que as pessoas com menos espiritualidade que ele conhecia eram os padres. Não quero aqui passar um juízo universal sobre uma classe de pessoas que se dedica, como muitos padres o fazem, a causas de grande valor num mundo sem Deus como o nosso. Mas meu amigo, sim, tinha alguma razão no que dizia. Se não no seu sentido total, pelo menos num específico: refiro-me ao pragmatismo da fé que caracteriza muitos dos “profissionais da religião”, para além dos padres católicos.

Vou fazer uma analogia para ficar mais claro o que quero dizer e depois volto ao tema do pragmatismo religioso. Refiro-me a vícios profissionais de comportamento. Não acho que esses vícios profissionais de comportamento sejam traços universais nas duas categorias profissionais que vou citar como analogia para chegarmos ao que estou chamando aqui de pragmatismo da fé.

Muita gente costuma dizer que o cotidiano dos advogados acaba por produzir neles um certo ceticismo com a “natureza humana”, na medida que eles veem famílias se destruírem por conta de inventários, empregados processarem patrões generosos ou cônjuges virarem inimigos mortais após anos de vida gratificante e de juras de amor trocadas no calor do leito. Esse ceticismo ou cinismo seria um vício profissional de comportamento decorrente do acúmulo de “evidências” contra a fé na natureza humana.

Os serviços religiosos têm custos, mesmo um pai de santo precisa de verba pra comprar bichos para os sacrifícios que pede o candomblé

É comum pessoas se referirem a médicos como pessoas frias que não se sensibilizam com o sofrimento humano. Causa suposta: um cotidiano de repetidos casos de sofrimento físico grave em que a “frieza objetiva” no trato com o paciente seria necessária. O acúmulo de experiências desse tipo levaria os médicos ao vício profissional de comportamento descrito como “frieza” com o sofrimento humano. Não estou levando em conta aqui o agravamento deste vício devido ao trabalho sem condições decentes ou sem perspectivas de melhoria financeira dos médicos que atendem centenas de pacientes no SUS ou em seguros de saúde baratos. Portanto, o vício profissional de comportamento seria fruto de um cotidiano que se impõe à pessoa que o exerce.

E aí chegamos ao desencanto do meu amigo com os padres, desencanto este que acredito poder aplicar também aos demais profissionais da religião, isto é, os ministros religiosos. Espera-se profundidade moral e espiritual em ministros religiosos. Não vou discutir se essa expectativa é ingênua, mas assumo que a existência dessa expectativa é, de alguma forma, consistente com a visão que se tem das religiões hoje: sistemas culturais a favor do “bem” e de valores não materiais. Grosso modo, esta seria uma definição básica de profundidade moral e espiritual.

Minha hipótese é que nossa visão da religião é que está errada. A religião, inclusive para sustentar sua suposta função de defensora do “bem” e de valores não materiais, precisa de sustentabilidade econômica, administrativa e de recursos humanos . Daí que os ministros religiosos são, na maior parte do tempo, gestores econômicos, administrativos e de recursos humanos. Pra começo de conversa, ministros religiosos competem dentro de seus mercados de fiéis. São obrigados a conquistar e manter fiéis investindo em sua fé e, por consequência, investindo na “máquina da fé” que são as instituições religiosas, pouco importa qual. Os serviços religiosos têm custos, mesmo um pai de santo precisa de verba pra comprar bichos para os sacrifícios que pede o candomblé. Afora isso, tudo custa luz, água, manutenção, logística. Deuses são baratos, mas seus representantes no mundo dos mortais custam caro.

Meu amigo se assustava com o pragmatismo dos padres. De fato, o pragmatismo dos ministros religiosos pode chocar quando imaginamos que o “mundo divino” e de seus funcionários seja mesmo espiritual e não material como qualquer “negócio”. “Elevação moral e espiritual” ocupa lugar no espaço como tudo mais. Ver como o pertencimento ao corpo profissional das religiões pode fazer de você uma pessoa fria e pragmática pode ser mesmo uma decepção para os mais crentes.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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