No dilúvio dos poderes políticos genuínos, veio o milagre: como se fosse dotada de excepcionais poderes de divinos, a corte constitucional passou a julgar tudo e qualquer coisa. De casos inexpressivos a importantes questões institucionais da República, tudo, absolutamente tudo, se transformou em matéria passível de suprema validação. Tal hipertrofia – que por si só já seria danosa – veio acompanhada com o véu do subjetivismo que, como cediço, é casada em papel passado com o casuísmo judicial. O resultado não poderia ser outro: a grave descrença do Supremo Tribunal Federal frente aos olhos da nação.
Sim, o fenômeno não é meramente brasileiro.
Em recente debate sobre a crise do constitucionalismo norte-americano na New York University, o espírito crítico do professor Louis Michael Seidman, da Universidade Georgetown, provou a plateia, afirmando: “Nós precisamos esquecer inteiramente o constitucionalismo. Ou pelo menos sobre o constitucionalismo de regras e detalhes”. Em linha mais pragmática, o professor Lawrence Lessig, da Universidade Harvard, apontou que “a Constituição não está produzindo uma democracia responsiva às pessoas”, vindo a concluir que o modelo atual “cria um processo profundamente corrupto de seleção de nossos representantes e presidente”. Ao encerrar o painel, Donna Edwards (ex-deputada pelo estado de Maryland) pontuou que é preciso “reimaginar a Constituição”.
Sentenças judiciais não resolvem problemas políticos, podendo, inclusive, agravá-los
Como se vê, as dificuldades do constitucionalismo em bem mediar os interesses e conflitos da democracia contemporânea traduzem questão de ordem em muitos núcleos de pensamento político mundial. Sem cortinas, as insuficiências do direito legislado, a decadência dos parlamentos como instância eficaz de debates e respostas aos problemas coletivos, e o engessamento das estruturas governamentais provocaram um bug nas instituições políticas e administrativas, deslocando muitas deliberações democráticas para a esfera dos tribunais.
O problema é que sentenças judiciais não resolvem problemas políticos, podendo, inclusive, agravá-los. Ora, o Supremo não é Deus, não pode caminhar sobre as águas nem ser Executivo e Legislativo ao mesmo tempo. Infelizmente, por causas e circunstâncias complexas, há uma nítida confusão de competências no Brasil que, ao fim e ao cabo, redunda no desprestígio institucional da alta corte. Aliás, a subversão das ações de constitucionalidade em terceiro turno das votações parlamentares, antes de proteção de minorias, gera, não raro, arbitrária subjugação da soberania democrática do Congresso Nacional. Isso sem contar, é claro, o manejo indiscriminado de reclamações ou de habeas corpus como sucedâneo recursal que, apesar do atropelo a regras processuais básicas, acabam, por vezes, sendo conhecidos e julgados, quebrando-se a orientação sistêmica do aparelho judicial.
A realidade está desnuda, e não basta virar os olhos para a nudez e criar vestes de aparência. Objetivamente, a sociedade da informação não mais aceita versões fantasiadas de verdade. Existe, aqui, todo um novo funcionamento social que exige melhores e mais claras respostas das instituições republicanas. Há um firme clamor por autenticidade e decência de fundamentos. O desejo de transparência radical dos atos de poder é uma variável coletiva que veio para ficar, alterando o funcionamento dos nebulosos jogos da política. Por seu turno, uma corte constitucional midiática deve ter apurado cuidado no dever de motivação decisória, pois palavras ditas são incapazes de transformar o quadrado no redondo.
- Um Supremo que desafia simplismos (editorial de 13 de outubro de 2019)
- “Me prenda, Lewandowski!” ou: o STF (que é uma vergonha) e as mazelas de 1988 (artigo de Marcos Paulo Candeloro, publicado em 13 de outubro de 2019)
- A (não) suspeição dos ministros do STF: o caso Gilmar Mendes (artigo de Felipe Machado, publicado em 13 de outubro de 2019)
É cediço que a dualidade normativa da Constituição informa a presença de normas jurídicas, bem como de regras e princípios políticos. Naquilo que for jurídico, quando alvo de violação constitucional direta e frontal, o Supremo está autorizado a atuar. Mas, naquilo que for político, o STF deve obediência harmônica aos demais poderes republicanos. Ciente de que não há poder absoluto, bem como fiel ao dever de respeito às deliberações democráticas, o grande juiz constitucional Oliver Wendell Holmes, certa vez, escreveu que “if my fellow citizens want do go to hell I will help them. It's my job”.
O fatalismo do notável jusfilósofo americano não precisa ser levado ao extremo. Afinal, o constitucionalismo é, em sua essência, uma tentativa racional de se evitar os apagões civilizatórios e os colapsos da moral social. Todavia, a força de uma Constituição não está na sintomática hipertrofia de sua corte constitucional, mas na consciência cívica de que a lei e a justiça são inegociáveis imperativos da vida em sociedade. Hora, portanto, de reequilibrar o pêndulo da suprema jurisdição. Ou será que o atual funcionamento do STF é benéfico para a institucionalidade brasileira?
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.