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Precisamos falar de cultura democrática

Servidores chamam reforma de "caixa preta"
Brasília. Imagem ilustrativa. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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Ao longo deste dramático ano de 2020 a humanidade tem sido obrigada a encarar desafios inéditos que alteraram profundamente as dinâmicas sociais. Além dos choques óbvios decorrentes da pandemia, como a crise nos sistemas de saúde, os lockdowns e os trágicos efeitos humanitários e econômicos decorrentes, as nações vêm sofrendo com problemas sociais que se agravam a cada dia e que podem ter em comum um fator pouco conhecido pelas pessoas: o empobrecimento da cultura democrática dos cidadãos.

Sinais de que a saúde da democracia global anda mal se tornaram comuns. Sociedades profundamente divididas, intolerantes e a ascensão de lideranças autoritárias, são todos sintomas da fragilização da cultura democrática.

O termo “cultura democrática” ainda é restrito ao meio acadêmico. Pouco se fala do assunto fora dos cursos de Ciências Sociais e há pouca clareza acerca da relação entre os graves problemas sociais que carregamos, como a desigualdade e o preconceito, com a descrença dos indivíduos com o meio político ou a falta de confiança entre as pessoas – noções que fazem parte do conceito de cultura democrática. Entretanto, é certo que, ainda que pouco conhecida, essa relação existe e recentes dados indicam a existência de um problema estrutural no Brasil.

Fortes evidências do problema social no Brasil

Sintomas do enfraquecimento da cultura democrática brasileira já estão sendo revelados por pesquisas: o Índice de Democracia Local, aplicado em 2019 na cidade de São Paulo, evidenciou que o nível de conhecimento político na cidade é baixíssimo (de zero a 10, a nota foi de 1,34). Pesquisa semelhante feita anualmente pela The Economist Intelligence Unit, o Democracy Index classifica o Brasil como uma democracia frágil desde 2006, sendo que em 2019 atingimos o patamar histórico mais baixo. O mesmo índice atribuiu nota 5,00 para a cultura política brasileira, equivalente a países como o Suriname, Guiana e Republica Dominicana.

Outro dado que merece destaque é o porcentual de brasileiros que aceitariam que as regras do sistema democrático fossem descumpridas em razão de crises como a pandemia – a pesquisa World Values Survey aplicada em 2020 mostrou que 82,5% dos cidadãos brasileiros responderam dessa forma. Por fim, recente levantamento feito pela Universidade de Cambridge indica que o Brasil apresenta o seu menor índice de satisfação popular com a democracia desde 1990. De acordo com a pesquisa, nós, brasileiros, nos juntamos a outras grandes democracias em crise como Estados Unidos, México, Reino Unido, África do Sul, Colômbia e Austrália.

Diante de tantas evidências, não restam dúvidas de que temos um problema social urgente a ser endereçado sendo que, neste caso, está em jogo a própria infraestrutura da sociedade brasileira: como veremos abaixo, as chamadas “aptidões” da cultura democrática estão diretamente associadas à consciência cívica das pessoas e integram, portanto, o próprio tecido social da nação.

Um ponto de partida – para além da educação política 

Para não nos limitarmos a combater eternamente sintomas desse grave problema social, mais do que nunca é preciso identificar e atacar as causas da baixa cultura democrática brasileira. Nessa linha, não há dúvida de que se trata de um problema de alta complexidade e que tem raízes e conexões ainda pouco conhecidas.

Repetir que “a educação política é a salvação” é tentador. Sim, educar os cidadãos sobre direitos e deveres cívicos é fundamental e já existem numerosas iniciativas nesse sentido, especialmente na academia e no terceiro setor. Entretanto, precisamos compreender que problemas complexos não admitem soluções simples. E infelizmente não há evidências de que a educação cívica seja a “bala de prata” para o fortalecimento da cultura democrática.

Quando observada a diversidade de componentes que integram o conceito de “cultura democrática”, fica claro que o tema precisa ser abordado por vários ângulos. Sugiro, portanto, um ponto de partida: para que a sociedade comece a se mobilizar e a produzir mudanças na sua cultura democrática, é preciso, antes de mais nada, disseminar o conceito, iluminando seus diversos componentes para que todos tomem conhecimento e participem da transformação. Simplificar e socializar o conceito de cultura democrática é fundamental.

Para o cidadão comum, o que é importante saber sobre cultura democrática? Se lembrarmos que “cultura” pode ser entendida como o conjunto de conhecimentos, hábitos, crenças, costumes e outras aptidões apresentadas pelas pessoas numa sociedade, quando falamos em “cultura democrática” estamos nos referindo ao conjunto de aptidões, conhecimentos e hábitos cívicos que cada cidadão precisa desenvolver e exercer para fazer valer seus direitos e desempenhar seus deveres na vida em uma sociedade democrática.

Estão dentro desse conjunto noções como “conhecimento político”, “interesse político”, “confiança interpessoal e nas instituições”, “solidariedade”, “cooperação”, “tolerância”, “disposição ao diálogo” e “apoio à democracia”, conceitos utilizados em diversas pesquisas como o Democracy Index, da The Economist Intelligence Unit, e o Índice de Democracia Local, do Instituto Sivis. São atributos de naturezas diversas e que revelam o caráter sistêmico do problema. A solução transcende, portanto, a esfera do conhecimento – daí porque nos parece que apostar na educação política, por si só, é insuficiente.

Que tipo de medida seria capaz de melhorar a capacidade de cooperação das pessoas? Como se faz para fortalecer os níveis de confiança entre os cidadãos? Como se fomenta o diálogo e a tolerância? Quais os meios para que os valores democráticos sejam incorporados pelas pessoas? Como o fortalecimento de uma dimensão impacta nas demais? São perguntas que precisamos começar a responder com urgência.

Diante de tal complexidade, o cenário exige que os todos os atores da sociedade – governos, organizações da sociedade civil, empresas, fundações, mídia, cidadãos – se organizem em torno de uma ampla agenda de iniciativas que promova, de forma integrada, ações em torno das diversas dimensões da cultura democrática.

As evidências indicam que sociedades onde a cultura democrática é mais forte são mais coesas e cooperam mais, e por isso reagem melhor diante de crises. É o oposto do que estamos observando no Brasil e em outros países em que a ruptura social, o individualismo, as “bolhas” ideológicas que alimentam a intolerância e o preconceito, e o desrespeito às regras democráticas prejudicam a capacidade de resposta de uma nação diante de desafios importantes.

Como nos lembrou o professor Boris Fausto, da USP, em recente evento promovido pela Votorantim no âmbito de seu Programa Cidadania, “a democracia dá trabalho, mas vale a pena”. Ela está longe de ser perfeita, mas até hoje nenhum outro regime se mostrou mais eficaz na promoção do bem-estar das sociedades do que os sistemas democráticos. Precisamos cuidar do nosso, e o fortalecimento da cultura democrática dos cidadãos é o caminho.

Maurício Mussi é gerente de Relações Institucionais da Votorantim S.A.

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