O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, quando algo fugia da normalidade ou lhe causava certa perplexidade, utilizava-se da expressão “Tempos estranhos”. Enquanto juiz da Suprema Corte era tido como um aguerrido defensor dos direitos e garantias individuais (garantista extremado) e um incansável paladino das normas legais, notadamente a Constituição Federal. Poder-se-ia dizer que era um julgador positivista, contrário às interpretações dialéticas desassociadas do sentido dos textos normativos/legais.
Quando o presidente da República concedeu o indulto/graça ao então deputado federal Daniel Silveira, condenado pela Suprema Corte por ataques verbais contra aquele sodalício e aos seus ministros, o ex-ministro Marco Aurélio concedeu entrevista à CNN Brasil, assim manifestando-se: “Não vejo crime algum do presidente da República. Ele está exercendo o mandato e foi eleito pela maioria dos eleitores e definiu no campo estritamente político quanto à graça implementada relativamente ao deputado. Não há desvio de finalidade...”.
A exacerbação interpretativa da lei, ao bel prazer do julgador, tem como consequência a insegurança jurídica.
Marco Aurélio foi além ao ser indagado, na ocasião, o que faria se estivesse no lugar da relatora da ação contra o indulto de Bolsonaro a Daniel Silveira, respondendo, enfaticamente, que: “O normal seria a extinção do processo, como deveria ter sido extinto o processo-crime contra o deputado Daniel Silveira, aceitando-se a inviolabilidade quanto as palavras e opiniões.”
O artigo 53 da Constituição Federal prevê que parlamentares são invioláveis por quaisquer opiniões. O renomado jurista e advogado Ives Gandra, um dos maiores constitucionalistas vivos deste país, na época, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, reproduzido no site Conjur, sobre o tema firmou que "Ninguém pode contestar. Ele (o presidente) pode consultar outras pessoas para tomar a decisão, mas ele não é obrigado a consultar. É um poder absoluto que ele tem. Qualquer restrição que venha a ser dada ao direito de dar indulto é limitar o que a Constituição não limitou”.
Sabe-se que direito não é matemática, mas a função do julgador, com todas as vênias aos ministros da Suprema Corte, que por maioria, anularam o indulto concedido por Bolsonaro ao ex-deputado Daniel Silveira, há de ser vinculada ao direito posto, sob pena de mudar o sentido da lei, o que, a meu ver, aconteceu neste caso.
A própria Procuradoria-Geral da República, autora da ação penal contra Daniel Silveira, em seu parecer, reconheceu a legalidade do indulto: “O decreto presidencial é existente, válido e eficaz, sendo que o gozo dos benefícios da graça concedida está na pendência da devida decisão judicial que declare extinta a pena, nos termos do artigo 738 do CPP, artigo 192 da LEP e artigo 107, II, do CP, com retroatividade dos correlatos efeitos jurídicos à data de publicação do decreto presidencial".
Estamos vivenciando, infelizmente, há algum tempo, a teoria da prensa hidráulica dialética, na qual, através de narrativas jurídicas construtivas na exageração do intérprete, consegue burlar o sentido da lei. A exacerbação interpretativa da lei, ao bel prazer do julgador, tem como consequência a insegurança jurídica ora vivenciada pelos jurisdicionados. No caso em espécie, no julgamento da ação penal contra o ex-deputado, através de excessos interpretativos, com renovada vênia, os cultos juízes relativizaram a imunidade parlamentar prevista no artigo 53 da CF/88, que, assim, preceitua: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Agora, com o julgamento da maioria da Corte pela anulação do decreto de Indulto concedido pelo então presidente Bolsonaro ao Daniel Silveira, modificou-se, por argumentos falaciosos, o teor do artigo 84, XII, da Constituição Federal de 1988 (CF), o qual estatui, expressamente, a competência privativa do presidente da República para “conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei", retirando o discricionário do representante maior da nação, assegurado pelo retrocitado dispositivo.
Se permitido que o Judiciário perpetue com a saga da retórica dialética, mitigado será o art. 2º da Carta Constitucional, resultando na alteração de seu conteúdo, que haverá de dispor que os Poderes da União, Legislativo e Executivo, somente serão independentes e harmônicos se submetidos ao crivo do Poder Judiciário. Tempos estranhos.
Bady Curi Neto, advogado fundador do Escritório Bady Curi Advocacia Empresarial, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e professor universitário.
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