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Em um outono particularmente triste para a cultura jurídica brasileira, familiares, colegas e tantos ex-alunos de Antônio Augusto Cançado Trindade estiveram no Campo da Esperança, em Brasília, para seu sepultamento.
Falecido no primeiro dia de junho, perdemos o ilustre jurista mineiro, em pleno exercício de incomum segundo mandato na Corte Internacional de Justiça. Reconhecido e admirado em diversos países e continentes, com percurso destacado tanto em tribunais e cortes internacionais como em seu prodigioso magistério, ele publicou obras e artigos de grande repercussão. Na Justiça Internacional, com a distinção de juiz diferente e referente, proferiu sentenças inovadoras, cheias de humanismo e de senso de justiça, ainda que a confrontar certezas clássicas do Direito Internacional Público. Polemista e versado debatedor, deixará registro indelével, meticuloso e sem descurar do estudo para a produção de vasta obra, na construção de embasamento teórico para suas sempre inovadoras divergências.
O Direito Internacional é peculiar: se formal por um lado como direito escrito, versado em inúmeros tratados, por outro é informal e difuso, quando assente em normas não escritas, nos costumes internacionais. Dessa maneira, como disciplina em constante construção, sempre imperfeita e por fazer, o Direito Internacional foi espaço por excelência para as inquietações doutrinárias e ao heurismo virtuoso de Cançado Trindade. E também espaço privilegiado para o talento de um sem número de juristas brasileiros, a consagrar muitos de nossos co-nacionais, célebres no tempo e no espaço, desde Ruy Barbosa e Clóvis Beviláqua. Mas não apenas os dois, tão citados em nossas escolas.
De fato, são tantos outros grandes nomes brasileiros, não rara vez mais conhecidos fora de nosso país, o que é injustificável. São exemplos disso o primeiro presidente da OAB nacional, Levi Carneiro, ainda nos anos de 1930 e, em seguida, Raul Fernandes, outro presidente luminar da OAB. Com seu nome associado à famosa cláusula que ajudou a criar, também chamada de “cláusula facultativa de jurisdição obrigatória”, sua iniciativa permitiu o reconhecimento de tribunais e cortes internacionais como hoje concebidos, no contexto histórico da criação da Organização das Nações Unidas e de suas instituições judiciais.
Ao contrário de importantes países, muitos dos quais basilares em nossa formação jurídica, mas que nunca tiveram juízes na Corte Internacional de Justiça, o Brasil teve sete de seus juristas de primeira grandeza a compor a mais alta instância do direito. Tanto em sua primeira forma, após a Primeira Guerra Mundial, como mais tarde, no contexto da criação das Nações Unidas, no Palácio da Paz, o Vredespaleis na velha Haia, capital política dos Países Baixos.
Apenas provenientes da Universidade Federal de Minas Gerais, por sua Faculdade de Direito, a “vetusta Casa de Afonso Penna”, foram três juízes prodigiosos: além de Cançado Trindade, também José Sette Câmara, no período de 1979 a 1988, e José Francisco Rezek, no período de 1997 a 2006. Em outros fóruns internacionais importantes da mesma forma pontificaram juristas brasileiros, como no órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio, em Genebra, e no Tribunal do Direito do Mar, em Hamburgo, com os ofícios de professores eméritos das Arcadas, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, respectivamente Luiz Olavo Batista e Vicente Marotta Rangel. No Paraná, não podem ser esquecidos os nomes dos professores da UFPR, Oscar Martins Gomes e Sansão José Loureiro, já falecidos, mas que deixaram grande legado como internacionalistas e docentes extraordinários.
No prestígio internacional de um país, dentre tantos fatores que compõe o seu acervo de soft power, também está incluído o grau com que prestigia o estudo e a boa prática do Direito Internacional. Nesse quesito, o Brasil possui larga tradição, com serviços prestados à causa da manutenção da paz, da segurança coletiva e da solução pacífica de controvérsias, a par da relevante produção doutrinária de sua academia, da esmerada preparação de seus quadros diplomáticos, sem nunca esquecer da atuação de juízes brasileiros a compor tribunais e cortes internacionais.
Que a vida e a obra de Antônio Augusto Cançado Trindade possam agora perpetuar-se no despertar de outras tantas vocações.
Jorge Fontoura é professor e advogado.