| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

Muito se tem falado sobre a privatização dos serviços de saneamento no Brasil como um modelo inverso ao de gestão adotado por outros casos no mundo. Isso porque alguns estudos afirmam que a remunicipalização dos sistemas de água e esgoto tem tido grande crescimento nos últimos anos. Porém, este conceito não representa a realidade de hoje e mancha a participação do setor privado no setor de saneamento, com objetivos idealistas destrutivos e não construtivos.

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Começo desconstruindo o argumento principal, o do aumento da remunicipalização. Segundo o Global Water Inteligence (GWI), a população mundial atendida por operadores privados no setor de água e esgoto cresceu de 700 milhões de pessoas para 1 bilhão entre 2006 e 2016. O órgão afirma que os principais motivos para esse crescimento são a restrição dos orçamentos públicos associada à redução de custos; o aumento de endividamento e de assunção de riscos; o crescimento da população urbana com demanda por soluções cada vez mais complexas e sustentáveis para serviços de saneamento básico; e a inovação tecnológica e transferência de conhecimento às concedentes a partir dos contratos.

A ONU reconhece que as parcerias-público-privadas “são ferramentas para atingir o desenvolvimento sustentável”

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A ONU reconheceu, em vários dos seus estudos, que as parcerias-público-privadas “são ferramentas para atingir o desenvolvimento sustentável, melhoram o acesso a serviços essenciais às populações socialmente e economicamente mais vulneráveis e que o setor privado, juntamente com o setor público, influencia fortemente a sociedade para garantir que esses projetos sejam benéficos aos cidadãos”. No Brasil, percebemos a mesma tendência. O atendimento à população urbana cresceu de 8 milhões para 16 milhões no período de 2007 a 2016, segundo a Associação dos Concessionários Privados de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON). Um crescimento de 100% em nove anos, a partir de diversos modelos de prestação de serviços, como contratos de desempenho, concessões plenas ou parciais, locação de ativos, PPPs administrativas ou patrocinadas e parcerias estratégicas.

Alguns dizem que a gestão do saneamento de Paris, por exemplo, sofreu “pseudofracassos” quando tinha sua distribuição de água concedida à Veolia e à Suez. O serviço se manteve por 25 anos até ser cancelado em meados de 2010, quando Bertrand Delanoë, eleito em 2008, cumpriu duas das promessas de campanha: a de não renovar os contratos com as empresas privadas e a de criar uma empresa municipal, a Eaux de Paris, para gerir tanto a produção quanto a distribuição de água potável. Até então, a produção de água potável estava sob a responsabilidade da Sagep, da qual o município de Paris detinha 72% e as mesmas empresas privadas, 28%. Essa decisão, porém, foi política e ideológica, e não consequência de má prestação ou não cumprimento de obrigação contratual por parte dos operadores privados.

Dezoito meses após o início dos serviços da Eaux de Paris, o prefeito decretou uma redução das tarifas em 8%, apresentada como consequência da eliminação da remuneração do acionista privado. Porém, uma análise detalhada, feita pela Fundação Frap, das contas da Eaux de Paris mostrou que foi o subinvestimento entre 2010 e 2012, comparativamente aos operadores privados anteriores, que permitiu efetuar essa redução de tarifa sem aumento de dívida. O tribunal de contas concluiu que “a diminuição do volume de investimento associado a um crescente aumento de custos decorrentes da adequação da remuneração dos funcionários das empresas privadas à remuneração dos funcionários públicos levará a Eaux de Paris a aumentar as tarifas e a buscar novos financiamentos nos próximos anos”. A própria fundação ressalta que, na região metropolitana de Paris, onde os serviços estão concedidos a empresas privadas, a concorrência entre os operadores privados nas licitações para a renovação de contratos levou à diminuição de tarifas da ordem de 14%, muito superior aos 8% concedidos pelo município de Paris.

A concessão outorgada à Suez em Buenos Aires, em 1993, proporcionou um desconto de aproximadamente 23% sobre as tarifas praticadas pela autarquia pública anterior. Segundo o economista argentino Sebastian Galiani, a autarquia pública tinha investido US$ 25 milhões por ano entre 1983 e 1993, enquanto o concessionário privado Águas Argentinas investiu cerca de US$ 200 milhões por ano entre 1993 e 2000. De acordo com a Suez, durante os 13 anos da concessão, 2 milhões de novas pessoas foram atendidas em água e 1 milhão em esgoto, sendo que de 2003 a 2005, apesar da crise econômica argentina, mais de 100 mil novas pessoas de baixa condição socioeconômica e vivendo em área de ocupação ilegal receberam os serviços.

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Como decorrência da crise que levou o país a um default internacional, a uma inflação galopante e a uma desvalorização do peso argentino, a concessionária Águas Argentinas necessitava de um reajuste tarifário contratual para fazer frente a suas obrigações. O governo argentino de Nestor Kirchner decidiu não dar o reajuste e encerrar unilateralmente o contrato em 2006. O grupo Suez deu entrada a uma arbitragem internacional pelo Banco Mundial e obteve ganho de causa em 2017, com o direito de receber uma indenização de US$ 345 milhões do governo argentino. Desta forma, a concessão de Buenos Aires não aumentou a tarifa da população – pelo contrário, a diminuiu. Além de aumentar em oito vezes o volume de investimento anual e expandir os serviços de água e de esgoto à população.

Com base nesses fatos, afirmo que a participação do setor privado é, sim, uma solução possível para fazer frente aos problemas que o setor de saneamento vive pelo mundo. Não esquecemos que cerca de 85% da população mundial é atendida por operadores públicos – portanto, os maiores responsáveis por essa situação.

A não renovação dos serviços de água em Paris e em Buenos Aires ocorreu por motivos políticos e ideológicos, e não por fatores técnicos e operacionais. Para a população, tanto faz se o operador é público ou privado, o que ele precisa é fornecer os serviços de maneira sustentável e eficiente, com tarifas justas e adequadas para todos.

Yves Besse é membro do conselho da Aquafed, da ABCON e diretor geral de Projetos para América Latina da Veolia Water Technologies.