A mentira parece ter se tornado o mal mais desejável desse século. Aliás, deixa-me retificar a frase para evitar uma confusão: a ”compulsão pela mentira” (pseudofilia) parece que se tornou a prática preferida de uma parcela significativa de pessoas no Brasil contemporâneo. Ela se apresenta como o mal do século. Mas o que é o mal/maldade? Segundo Agostinho de Hipona, o mal se define como “ausência de bem”. Por isso, sua natureza é objeto da filosofia moral.
Não se trata apenas de um mal que figura a dinâmica racional de uma conjuntura. Não, o mal é um problema que se enraíza na estrutura (ontológica) da realidade como um todo e produz uma racionalidade transgressora. Assim compreendido, ele não se manifesta esporadicamente aqui ou acolá, nesta ou naquela configuração histórica de existência. O mal define a natureza de um modo de existir e de operar na vida. Trata-se, portanto, de um problema moral.
Ele é caracterizado por um ethos. No entanto, ele também apresenta um instinto funcional. Ele afeta a substância das coisas, cria uma identidade ontológica e produz um comportamento errante inevitável. Sua mobilidade é monofuncional, haja vista que ela opera somente com finalidade de abolir o bem moral do mundo da vida humana. Por essa razão ele é associado ao conceito de pecado ou ao de “privação de ser” como é chamado no sistema neoplatônico de Agostinho.
A mentira deve ser entendida como uma forma variante moral do mal entendido por Agostinho. Por isso ela pode ser definida, de modo semelhante, como “privação da verdade”. Sua natureza consiste em atuar na realidade a fim de destituí-la de modos de vida fundamentados no ethos da verdade. Mas a verdade é várias coisas ao mesmo tempo. Ela é primariamente a única barreira que impede que o fluxo da mentira se transforme em expressão cultural predominante de uma sociedade. Pois é característica funcional da mentira a produção (em grande escala) de versões da realidade que obliteram a relação de encaixe preciso entre afirmações e constatações. Do ponto de vista de uma fenomenologia da moral, a verdade é o evento que promove uma simbiose entre o dito e o verificado na experiência. A mentira, ao contrário, é um fenômeno que promove uma dissociação radical das variáveis acima citadas.
A mentira se transformou em marketing político de comunicação da grande mídia sobre os grandes temas da sociedade brasileira desde que a pandemia Covid-19 se manifestou.
Deste modo, a verdade outra coisa não é senão um método de apreensão sóbria que se operacionaliza através do uso do princípio da não-contradição para identificar o grau de coincidência que há entre o fato/ocorrência e sua percepção/interpretação. A mentira não consegue revelar essa competência, haja vista que lhe falta serenidade hermenêutica promotora da unidade semântica entre linguagem e experiência objetiva. Por isso, a mentira não consegue preconizar forma e substância na configuração de uma unidade indissociável.
Seu instinto natural consiste em suprimir dolosamente elementos da realidade para subverter a ordem das coisas. É parte de sua vocação tirar vantagens com a comunicação do engano. Seu lucro real só é possível com a comercialização de sofismas. Por essa razão, a mentira apresenta uma dupla identidade operacional: 1) ela se manifesta e funciona de tal forma que ninguém consegue percebê-la como ela é, e 2) ela sempre revela aquilo que de fato não existe.
A mentira se transformou em marketing político de comunicação da grande mídia sobre os grandes temas da sociedade brasileira desde que a pandemia Covid-19 se manifestou. Ela tem sido utilizada como método de invisibilização da verdade ou meio para torná-la um artigo de comunicação inacessível à opinião pública. Esse comportamento acintoso deixou em evidência o tipo de psicopatologia gerado neste contexto: a racionalidade transgressora, um dos traços morais mais definidores de uma psicopatia socialmente compartilhada.
É esse fenômeno que emergiu na lógica de comunicação das grandes mídias e de poderes instituídos. O que se verifica é a intenção planejada de ocultar parte da realidade com o objetivo de produzir uma compreensão distorcida na consciência de uma coletividade. Na pior das hipóteses, esse comportamento alucinógeno sugere sua desconexão com a realidade não assumida.
Tal dissociação entre fato e realidade e entre percepção e interpretação passou a caracterizar parte significativa das grandes narrativas. O apego afetivo à mentira revela um traço psicopatológico estruturante de todas elas. A racionalidade transgressora é, na verdade, parte indispensável que compõe a engrenagem funcional que dá vida a uma engenharia da maldade. Isso demonstra não a incapacidade moral de comunicar fatos e acontecimentos movidos por um compromisso enraizado na verdade, mas, ao contrário, sua total aversão por ela.
A partir do contexto da Covid-19, a prática da mentira se transformou num bem de alta cotação no mercado do engano e a engenharia da maldade se tornou fonte de lucratividade. Por meio dela, a realidade foi subvertida para atender a demanda ideológica de parte da sociedade, e a percepção dos seus consumidores passivos foi alterada. O medo gerado por tudo isso levou parte da população à ilucidez.
A engenharia da maldade ganhou força e novos adeptos. Como consequência, se criou uma cultura de indiferença à verdade, o que favoreceu a irrupção de uma nova modalidade de apostasia coletiva em relação à verdade. Dessa prática se formou uma cultura moral do engano com o objetivo de privar o grande público do acesso à verdade. E esse contexto ajudou a formação de um ambiente para enraizar valores de um sistema iníquo, cujo objetivo passou a ser a institucionalização de um Judiciário insensível à realização do bem, se dissociando da verdade para servir deliberadamente a maldade instituída como valor social.
A comunicação da verdade se tornou um componente subjetivo da cultura social que passou a produzir uma histeria coletiva. Esse é o principal efeito colateral (negativo) produzido pela prática da pseudofilia. Infelizmente, a comunicação da verdade se torna imprópria no contexto da pandemia Covid-19, uma vez que ela (verdade) fere de morte as pretensões iníquas de quem quer promover a mentira e a maldade.
Essa configuração de uma moralidade negativa foi retratada na parábola bíblica do juiz iníquo (Lc 18,1-8). O conceito juiz iníquo indica a inversão de uma ordem moral aportada pela validação da contradição. Um juiz que suspende o direito promove a injustiça ao status de valor social, uma anomalia produzida para fomentar o crescimento de uma insegurança jurídica insanável e generalizada. Onde a lei funciona para promover e preservar a justiça, o direito nunca pode ser ignorado por um juiz. Do contrário, a injustiça passaria a compor o modus operandi do Judiciário, que se tornaria cada vez mais maligno em sua natureza operacional.
Quando isso ocorre, a desordem não prevista pela lei passa a ser produzida pelo próprio Sistema Judiciário. Numa configuração moral determinada pela inversão de valores morais, a indiferença à verdade leva a sociedade a legitimar a insanidade preconizada pela legitimação de conceitos contraditórios, tais como: juiz da iniquidade, ódio do bem e coisas do gênero.
O conceito de juiz iníquo representa simbolicamente a existência de um Judiciário adoecido e, irremediavelmente, condenado ao descrédito social. Sem a comunicação da verdade, a sociedade perde seu único instrumento de análise dos fenômenos sociais para manifestar a justiça. Este é o perfil axiológico de uma sociedade da mentira e da iniquidade em que estão tentando transformar o Brasil.
Que mundo é esse que o Judiciário criou? O que o futuro próximo reserva a esse país de gente injustiçada? Existe um caminho de cura para a sociedade brasileira?Honestamente falando, eu acredito que sim. A recomendação para conversão sóbria à verdade, seguindo a orientação moral de Paulo, o apóstolo, é simples e super eficaz: “Deixando, pois, a mentira, cada um fale somente a verdade ao seu próximo” (Ef 4,25).
Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.
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