“No estudo da criatura não devemos exercitar a vã curiosidade dos mortais, mas ascender na direção do que é imortal e sempiterno.” St Agostinho, De Vera Religione
Mestre Olavo, no início do atual governo, nos alertava para os problemas do cliché: “O conservador defende ideias e não pessoas”. Repetida ad nauseam, a ideia de que o conservador que se preza tinha que apoiar as ideias políticas vagas associadas com o termo “conservadorismo”, mas, ao mesmo tempo, meter o sarrafo em seu maior símbolo, Bolsonaro, parecia um libelo à racionalidade. Na verdade, o conceito só tomou corpo e tem adeptos até hoje porque não deriva de nenhuma lógica, mas do medo atávico que o brasileiro tem da traição. Afinal o brasileiro já se decepcionou tantas vezes com seus políticos... por que agora seria diferente?
Mesmo que o caráter de Bolsonaro tenha passado por vários testes, a expectativa da maioria de nós era que, inexoravelmente, o interesse por poder do presidente, mesmo que fosse por fins nobres, como, por exemplo, continuar mantendo o Brasil fora do controle da nefasta esquerda, o levaria a se associar ao interesse do velho estamento. O estamento no Brasil é como o "Deus" das piadas populares: uma entidade todo-poderosa, onipresente, onisciente, que finge que te ama, mas que no final vai acabar te passando pra trás.
A separação entre a classe política e o povo é parte da nossa história, nem se pode conceber a história do país sem se desenhar claramente essa oposição entre o que o “povão” é e valoriza, e o querem suas classes dominantes. Em nossa alma Tupiniquim trazíamos a certeza de que a história iria se repetir, portanto, o importante para quem queria o bem do país seria defender o movimento intelectual conservador ainda embrionário, protegendo-o de idolatrias políticas, e das distorções que as associações de ideias “puras” com seres humanos “impuros” inevitavelmente geram.
O Olavo estava certo. Ideias políticas não existem sem que sejam incorporadas em seres humanos reais de carne e osso e sangue quente.
O bom leitor vai observar que estou usando o verbo no passado para falar do trauma Tupiniquim. Não entenda isso com sugestão de que a cura nos tenha alcançado definitivamente. Mas é verdade que vivemos um tempo histórico nos últimos anos que, já deixou uma marca indelével em nossa vida política. O Olavo estava certo. Ideias políticas não existem sem que sejam incorporadas em seres humanos reais de carne e osso e sangue quente. São essas pessoas que vão representar os acordos e entendimentos simbolizados pelo sistema político e pela constituição. Uma sociedade que é articulada politicamente precisa de representantes que se posicionem como tais por meio de algum tipo de relação. E, segundo Eric Voegelin, verificar a natureza dessa relação povo-representante constitui a grande questão da ciência política.
O estudo da história das ordens políticas revela que os grandes impérios da antiguidade eram o que Voegelin chama de ordens de natureza cosmológica. Sem exceção, elas ofereciam aos súditos uma versão imanente do universo transcendente. Elas apontavam para o cosmos como fonte da verdade e representavam na terra numa dimensão menor, uma versão espelhada dele, um mini-cosmos, ou “cosmion” na terminologia do filósofo. Seja no império Mongol, no Chinês, no Egípicio, a ordem civilizacional oferecia para o povo que participava dela a verdade sobre a vida na terra. O imperador era uma encarnação da divindade superior, seus decretos a verdade absoluta, e rebelar-se contra ele era uma insurreição não contra um domínio político, mas contra a verdade absoluta em si mesma. Esses sistemas da antiguidade não são apenas curiosidades históricas, mas exemplos da história da política e da representação, que podem, segundo o filósofo, se repetir a qualquer momento.
O rompimento com a ideia de que a ordem política e a realidade eram a mesma coisa. Em outras palavras, a descoberta da verdade como algo independente e com acesso ao indivíduo foi um acontecimento de grande importância na história. Imagine se você como indivíduo não tivesse a prerrogativa de conhecer e verificar por você mesmo o que é a verdade, mas a sua única fonte de informação fosse o império todo poderoso? (Qualquer semelhança com as políticas públicas defendidas por algumas cabeças de bagre não é mera coincidência.)
Voegelin estabelece em sua vasta pesquisa histórica, que a “libertação” do ser político começa, portanto, com a religião judaico-cristã. Com a revelação recebida por Abrãao – "sai de tua casa de tua parentela" – , Israel inaugura um novo tipo de ordem política, que não está associada ao Deus transcendente, ou seja, não é um espelho da vontade de Deus, mas prestas contas a ele. Nesse sistema, o indivíduo, simbolizado por Abrãao, o típico Zé-Ninguém, sem eira nem beira, nem tradição, nem herança, se relaciona direto com o Criador e, portanto, com a verdade.
A revelação de Abrãao coloca a ordem social gerada a partir dessa relação do ser com o divino, abaixo do julgamento e da liderança de uma ordem transcendente. Ao contrário do que pensam os críticos, a teocracia de Israel era o único sistema político da antiguidade no qual o líder máximo tinha a quem prestar contas, Deus – e era um Deus que ele não manipulava – porque tanto os profetas quanto o próprio povo tinham acesso a ele tanto quanto o rei.
Depois de Abrãao, a revelação sobre a responsabilidade do individuo diante do transcendente chega a quatro grandes civilizações (de 800 AC a 300 AC), mas com características diferentes: a Grécia, começando com Heráclito, Sócrates e Platão; na Índia, com Siddharta Gautama; China com Lao-Tsé e Confúcio. O que todos esses pensadores tinham em comum? A noção de que existe um mundo que transcende esse nosso mundo terrestre e também um ser divino. O nosso mundo é por natureza limitado e nossa existência nele também, nem é final, nem tem consequências apenas aqui.
Voegelin parte daí para oferecer uma análise extensa do que seja a ordem política na história da humanidade. Mesmo que o filósofo depois tenha desenvolvido a ideia com muito profundidade, uma pequena sistematização ele empresta de Maurice Hauriou. A representação política no sentido moderno pode ser de duas naturezas, a existencial e a constitucional. E fazer essa separação é fundamental para que possamos entender a nossa história recente. Quando a Inglaterra se tornou um só reino, a partir da união de várias tribos, no período medieval, dois elementos participaram simbolicamente dessa união: a Carta Magna e a figura do rei.
Os dois eram símbolos da união, mas se referiam à ideia do “reino”, que por sua vez tinha dois significados implícitos: o reino em si pertencente ao rei, ou seja as terras e as pessoas que viviam na dependência dele, constituindo uma unidade abstrata representada pelo rei; e o outro significado que se refere à sua constituição humana – os súditos – que mais e mais começaram a ser cidadãos independentes na medida que o comércio foi criando força e tornando o ganha-pão de uma classe de pessoas independente da terra.
Esses dois significados estão ambos contidos na palavra reino, mas demandam representações distintas. Os cidadãos itinerantes tiveram que articular a sua forma de representação nesse reino através da articulação de uma representação para os que não eram parte direta daquele “estamento” estendido que era o reino. A autoridade representativa que deriva da relação direta do povo com o sistema político já existia, porque ela precede a sua legalização, mas precisava tomar corpo – e assim foi criado o parlamento, como uma expressão da autoridade representativa do povo.
São ditadores e demagogos que se imbuem de poder autocrático por encarnarem o povo. Verdadeiros líderes sabem que seu limite é a lei.
Nosso caminho até a representação constitucional foi inverso. Criou-se o Estado, no caso a República, e o povo aquiesceu. Nosso caminho na direção da unidade política nacional foi mais aquiescido, aceito, do que articulado. Nossa alma Tupiniquim tem os poderes da Mystique, da série X-Men: somos heróis metamórficos, esperando e acomodando transformações constantes. A nossa história republicana construiu a representação civil que o Império havia iniciado – a ideia do Brasil como um reino – com a constituição política, abstrata, empapelada pelos acordos escritos, a primeira Constituição etc. Mas ficamos distantes da possibilidade de uma representação verdadeira em que o governo constituído não é apenas legítimo constitucionalmente, mas também existencialmente.
Quero sugerir que na atualidade os dois significados de reino político e as duas formas de representação se unem. Há a representação dos súditos e do reino, ou seja, a ideia da unidade nacional, e o povo que a constitui. O presidente foi eleito e tem governado de maneira constitucionalmente legítima, ou seja, está bem de acordo com o primeiro sentido da representação política, o constitucional.
Mas há mais um feito, a inclusão do povo na administração. Quando presta contas à população todas as semanas em uma live mambembe, sempre com ar improvisada, focado às vezes nos feitos da semana, às vezes preocupado em esclarecer ataques mostrando o lado que a mídia infalivelmente se negava a mostrar, ele se posiciona simbolicamente com um funcionário do povo. Não está acima deles, não os incorpora via uma ideologia, mas se coloca como um funcionário, representante do patrão povo, na tarefa de dirigir o país. E assim o “mito” vai aos poucos construindo a imagem do que é uma representação política sadia, o governo “do povo, pelo povo, para o povo” – como resumiram bem para a América as palavras de Abraham Lincoln.
Trata-se do símbolo humano que encarna a erupção de uma nova articulação política onde o representante legal por sua vez também representa a vontade e os valores do povo. Ao invés de se aproveitar de sua popularidade para construir mais um novo tipo de populismo – erva daninha abundante na nossa horta política Latino-Americana – ele se aproxima dos pais fundadores americanos quando se recusa a incorporar o povo, mas continua representando-o dentro das limitações legais do cargo. São ditadores e demagogos que se imbuem de poder autocrático por encarnarem o povo. Verdadeiros líderes sabem que seu limite é a lei.
Essa nova manifestação de representatividade política não acontece apenas por mérito próprio. Ela acontece empurrada por manifestações de rua, e apoio público nas mídias sociais dado por milhões de “súditos,” ou seja, cidadãos independentes, que demandam de modo inequívoco o respeito aos fundamentos do Estado de direito, lei e a ordem, probidade administrativa, integridade política. O poder político desses cidadãos que até poucos anos atrás estava em estado de latência emergiu quando encontrou um representante político que lhes inspirasse confiança e incorporasse os símbolos que eles mesmos, os cidadãos, valorizam: como fé, autenticidade e valores cristãos. Assim, o brasileiro articula com ele uma representação existencial além da representação meramente legal a que estávamos acostumados.
Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutoranda em História e Teologia Política na University of St. Andrews (Escócia).