Tenho profunda curiosidade em saber qual é o sentimento que surge naquele que vê sua “profecia” ser concretizada. Se for uma previsão de um destino funesto, ainda assim há um misto de orgulho e satisfação na comprovação de sua sabedoria? Ou lhe resta angústia e consternação? Previsões boas nem merecem ser comentadas, afinal, coisas boas se bastam. Mas as ruins atormentam as vidas humanas e alimentam o desespero com a dúvida de sua possível materialização.
O que será que G. K. Chesterton pensaria a respeito da realidade atual? Olharia com desdém e pensaria “eu avisei” sobre as mudanças que esfacelaram as famílias contemporâneas? Faria pouco caso da decadência cultural e do embrutecimento do homem moderno? Ou agiria com pesar e sem nenhuma espécie de bom humor ao ver como a sociedade Ocidental adotou o progressismo como “verdade”? Isso atesta que seus apontamentos ao longo dos anos de nada serviram para que essa catástrofe ocorresse? Qualquer suposição não passa de um exercício fadado ao fracasso, visto que, como na quase totalidade dos casos que envolvam previsões, os “profetas” falecem antes de sua concretização.
Seja no campo das análises sociais, no da especulação filosófica, política ou literatura o fato é que sobram “profecias”. Em alguns casos utópicas, em outros distópicas. Entre os que se atrevem, sobram visões sobre o futuro. Outro nome que tem a mesma magnitude nessa área é o de George Orwell. Mesmo que esteja no rodapé da densidade intelectual de Chesterton, o socialista Orwell foi extremamente sábio ao se utilizar da criatividade de uma fábula (a obra “Animal’s farm”, traduzida no Brasil por “A revolução dos bichos”) para demolir especificamente a tirania de Stálin na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e de uma distopia (o livro “1984”) para também atacar o líder máximo da ex-URSS, mas com um texto que se enquadra em qualquer totalitarismo.
Mesmo que o progressismo tenha plena consciência de que no caso do conto da revolução na fazenda, seja impossível qualquer indireta que remeta aos seus antagonistas políticos, haja vista que Orwell foi muito explícito em suas analogias, no caso do célebre “1984”, o esquerdismo sempre vislumbra uma brecha para enquadrar críticas que se direcionem aos seus opositores. Basta verificar que em pouco menos de uma semana após a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América (EUA), as vendas deste livro subiram 10.000% de acordo com um porta-voz da editora responsável pela sua publicação naquele país, ao mesmo tempo em que liderava o ranking de vendas no site da Amazon. Mesmo que até o presente momento Trump não tenha se equiparado nem de perto ao personagem “Big Brother”, o fato é que para o progressismo o que importa é a narrativa.
Em perfeita sintonia com o que Orwell criticou, o esquerdismo pós-moderno encarna o ideal totalitário de vigilância dos indivíduos por meio de obrigações comportamentais que tentam construir um homem novo. Na visão romântica de Rousseau, somos seres inerentemente bons, mas fomos corrompidos pela sociedade. Nesse sentido, ao orientarmos a sociedade para algo desejável teremos seres humanos novamente bons, ou seja, perfeitos.
Assim, e pensando na ideia de novilíngua desenvolvida por Orwell em “1984”, que em partes consistia na adulteração de sentidos que tradicionalmente eram extraídos das palavras ou na supressão destas com o intuito de impedir pensamentos não autorizados pelo fictício Estado, como o progressismo real lida com este tema? Entende que a liberdade de pensamento é algo que não deve ser mediado pela burocracia estatal ou sugere constantemente que algumas palavras sofram alterações semânticas e sejam substituídas por outras que provoquem mudanças no pensamento social? Sem timidez, os vigilantes contemporâneos do politicamente correto não perdem tempo e colocam suas foices para funcionar.
Mesmo que esse terreno já esteja suficientemente repisado, nunca é demais lembrar como o progressismo faz da adulteração da linguagem, termos ou palavras, um sólido pilar para organizar suas agendas políticas. Realinhando a luta de classes para a órbita da comunicação, os agentes responsáveis por esta nova perspectiva civilizacional sabem que a alteração de uma palavra tem a capacidade de produzir mudanças comportamentais nos seres humanos. Não é uma mera substituição de “seis por meia dúzia”, mas sim o desenvolvimento de uma linha de raciocínio que possa confundir “cebola” com “ebola”.
É bastante comum encontrar na mente criativa daqueles que supostamente defendem os oprimidos um apelo que funciona como justificativa para as alterações linguísticas sugeridas: a consciência social. Consciência de que um termo remete a escravidão, consciência de que uma palavra reforça a opressão sobre as mulheres, consciência de que um vocábulo discrimina algum “gênero”, consciência de que tudo aquilo que não aceitar a cartilha ideológica de uma “revolução” cultural estará fadado a ser reconhecido como a típica representação dos incultos, selvagens e inconscientes. Nesse sentido, a “batalha” de argumentos é vencida pela aceitação, ou não, das regras sentimentais de linguagem pré-fixadas pelo esquerdismo: consciência é uma palavra carente de sentido e que no campo do progressismo é preenchido pela automatização de suas ideias no intuito de modificar arbitrariamente a realidade. O consciente é o sujeito que está apto a reproduzir mecanicamente tudo aquilo que a estrutura central e abstrata desta forma de pensar determina. No fundo, não há maior falta de consciência no suposto consciente e não existe sujeito mais consciente do que aquele que é visto como inconsciente.
Esse jogo proposital tem sua razão. Como argumentar objetivamente sobre a consciência de alguém? Portanto, a simples aquiescência de debate que envolva este termo para justificar uma modificação na linguagem põe o opositor do politicamente correto nas cordas com a simples opção de escolha do golpe que lhe trará o nocaute. Para vencer esta luta a sociedade precisa esquivar-se de termos que apelem para emoções, buscar objetividade e não aceitar as regras ditadas pelo progressismo. Caso contrário, não haverá escapatória e cairemos facilmente na rede de construção de narrativas linguísticas.
Shakespeare, em um clássico da literatura, ainda no século XVI, teve a lucidez de afirmar que a “consciência é apenas uma palavra que os covardes usam, criada inicialmente para manter os fortes admirados”. Em outras palavras, esse trecho da peça Ricardo III nada mais fez do que antecipar os subterfúgios linguísticos típicos daqueles que esperam entorpecer a racionalidade com doses cavalares de sentimentalismo. Em termos contemporâneos, quando não se tem razão, apela-se para a emoção. Ou alguém terá a “estúpida audácia” de discordar racionalmente quando um indivíduo apela para a romântica “consciência” em sua argumentação? Ou não é “lindo” ver Karl Marx e Friedrich Engels pedindo “consciência de classe” para implementar suas revoluções? E o que falar da falta de “consciência” política ou ambiental? Em todos os casos há a utilização de um recurso linguístico impactante e emotivo, propício para ideologias coletivistas, para que haja o silêncio proposital de seus opositores. Com a garantia deste “escudo mágico” que sensibiliza os interlocutores, o exército politicamente correto pode avançar sua agenda sem maiores sustos.
E não faltam exemplos sobre como estas fileiras se desenvolvem no tabuleiro da guerra cultural. Recentemente o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás divulgou em sua conta no Facebook uma sugestão para os tempos de pandemia. Pedindo para que as pessoas tenham novas atitudes frente a realidade da Covid-19, o Poder Judiciário goiano sugeriu que os cidadãos deveriam trocar as palavras de seu vocabulário. De forma imperceptível um dos tentáculos estatais propôs moldar o novo pensamento por meio de uma alteração de linguagem. As recomendações mesclavam o melhor do politicamente correto com uma adaptação da obra “1984”. Desta forma, deveriam ocorrer as seguintes substituições: “isolado” por “protegido”; “confinado” por “salvando vidas”; “tragédia” por “mudança”; “problema” por “oportunidade”; “medo” por “confiança”; “solidão” por “autoconhecimento”; e “tédio” por “pausa para criatividade”. Sendo um pouco irônico, creio que qualquer indivíduo preocupado com esta flagrante deturpação da linguagem ficará com “confiança” deste totalitarismo e dos efeitos nocivos à liberdade desta “mudança” cultural.
Inegável que o domínio sobre a linguagem, palavras e seus significados pode formatar as mentalidades de acordo com as visões ditadas por um poder centralizador. No caso mencionado, existem discrepâncias enormes quanto ao sentido de palavras como “tragédia” e “mudança”: a primeira implica em algo necessariamente ruim, ao passo que a segunda, por mais que esteja presente na primeira, não possui uma significação negativa por si só. Da mesma forma, nem é preciso mencionar o quanto “medo” e “confiança” são diametralmente opostas e escancaram a maneira com que o Poder Judiciário de Goiás defende a ideia de que a posse sobre as mentes alheias pode gerar um falso sentimento de consenso sobre uma situação.
Já no Twitter da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de seus braços ideológicos mais progressistas, a ONU Mulher, criou-se uma espécie de listagem de palavras que deveriam ser execradas do mundo contemporâneo por suspostamente protegerem um gênero ou grupo social. Iniciando com “o que você diz importa” (tradução para “what you say matters”, o que já mostra a linhagem da postagem), a publicação de 18/05/2020 pede para que a sociedade passe a usar uma “linguagem de gênero neutro” com o objetivo de “criar um mundo mais igual”. Para a ONU Mulher basta um pequeno ilusionismo linguístico para “criar” um mundo melhor. Aliás, “criar” um mundo é algo típico de mentes progressistas e revolucionárias que se veem como divindades terrenas capazes de alterar a realidade ao seu bel-prazer. Reformar, melhorar, adaptar, regenerar, aperfeiçoar, reestruturar são verbos bastante distintos de “criar”, o que denota como a ONU Mulher se filia ao progressismo e rejeita integralmente o conservadorismo. Afinal, quem cria, dá origem a algo novo que abandona as tradições, assim como o ser humano novo desejado pelos esquerdistas.
Pois bem, no seu “léxico” a ONU Mulher deseja retirar “man” (“homem”) que compõe algumas palavras de língua inglesa, tais como em “mankind” (humanidade) e “manpower” (mão de obra), e trocar por algo neutro, o que geraria “humankind” e “workforce”, dentre outras. Todavia, o feminismo turbinado encontrado em moças bastante robustas, tóxicas e de difícil socialização não se satisfez somente com essa mudança. Para tanto, e para agradar toda a paleta de cores de gênero existentes, indicou que “boyfriend” ou “girlfriend” (“namorado” e “namorada”, respectivamente) fossem trocadas por “partner” (parceiro), ao passo que “husband” ou “wife” (“marido” e “esposa”, respectivamente) fossem sucedidas por “spouse” (“cônjuge”). Novos tempos, novas configurações e novas palavras prontas para que sejam esquecidos os homens e as mulheres. Afinal, nada mais retrógrado do que uma diferenciação simples. O mundo complexo exige complexidade nas relações amorosas. Não tardará o dia em que será uma ofensa referir-se a esposa como esposa.
Seth Barron, em artigo publicado em fevereiro de 2020, no City Journal, trouxe mais um caso emblemático. No texto “Orwellian word games” (algo como “Jogos de palavras orwellianos”), Barron relata que uma nova lei do Estado da Califórnia proíbe o uso da expressão “at risk” (“em situação de risco”, em uma tradução adaptada a linguagem comum no Brasil) para descrever jovens problemáticos em documentos oficiais. Em suma, caso um professor, assistente social ou um tribunal queira dizer que um adolescente tem maior probabilidade de abandonar a escola, juntar-se a uma gangue ou ser preso, dado o seu histórico comportamental, nada de “risco”, afinal, de acordo com o deputado Reginald B. Jones-Sawyer, autor da lei, tal termo cria um estigma que automaticamente conduz os jovens às situações descritas.
Conforme o próprio Barron mostra, “em situação de risco” surgiu nos anos de 1980 para substituir “delinquente juvenil” e ofertar a possibilidade de que os adolescentes assim identificados pudessem ter uma chance, caso o Estado estabelecesse adequadas políticas públicas. Em outras palavras, o que Barron quis dizer é que “risco” é uma possibilidade e não uma marca indelével. Mas a lei é ousada e quer trocar este sujeito em “risco” por jovem “promitente” (“at-promisse”, em inglês), afinal, de acordo com legislador, eles são “a promessa do futuro”.
Um progressista é uma piada pronta. Confirmando que o desejo dessa ideologia é uma tragédia social, o que este deputado diz é que caso um jovem se incline a participar de gangues, evadir a escola ou parar na cadeia, ele é a promessa de futuro da Califórnia. Por mais que Barron tenha sido bastante enfático ao declarar que “se a reforma da sociedade dependesse apenas de novos nomes para as coisas, então todos estaríamos vivendo na utopia”, o que ele não deu conta é que o esquerdismo deseja a desordem. Portanto, é bastante justo que chamem aqueles adolescentes problemáticos como promitentes de uma nova era, ou seja, do futuro obscuro daquele Estado.
Com a mesma intimidade de quem divide um vestiário esportivo é possível correlacionar os exemplos listados com a linguagem politicamente correta e seus eufemismos. No campo da educação, proveniente de uma linhagem ajustada ao pensamento de Paulo Freire e do construtivismo, nos últimos anos surgiu um insaciável desejo de abandonar a palavra “aluno” em prol de “aprendente”. A principal razão é a de que aluno seria aquele que não tem luz, ou seja, sem conhecimento, ao passo que a nova palavra traz a ideia de alguém que está em constante aprendizagem. Pelo visto, soa demasiadamente preconceituoso afirmar que alguém busca um ensino para adquirir conhecimento, ao passo que chamá-lo de “aprendente” tem a capacidade de ofertar a este sujeito uma droga com o efeito psicodélico imediato que pode colocá-lo instantaneamente em outro patamar de conhecimento. Mas isso não passa de um afago embusteiro que não resiste aos primeiros testes da racionalidade. E não são poucas as instituições de ensino superior que estão adotando essa linguagem suavizada para “encantar” seus “clientes” ao vender-lhes a mentira (ou diplomas) de que sabem alguma coisa quando não sabem nada.
Outra situação diz respeito à “prostituta”, palavra que é cada vez mais rara de ser empregada. Ora chamadas de “profissionais do sexo” ou “trabalhadoras sexuais”, estas designações são sempre apropriadas por coletivos que desejam regulamentar esta prática de trocar sexo por dinheiro, tentando ofertar uma fantasiosa dignidade as mulheres que se envolvem nisso. Por outro lado, quando os termos são “garotas de programa” ou “acompanhantes”, existe uma espécie de suavidade que belisca o glamour, afinal, que mal tem em fazer um “programa” ou “acompanhar” alguém em uma noite ou viagem qualquer? De toda forma, o que a nova linguagem deseja é abrandar a repulsa que boa parte da sociedade tem com o ato de vender temporariamente o corpo mudando a forma de pensar das pessoas com o objetivo de que vejam essa atividade como uma outra qualquer.
Chesterton em abstrato e Orwell em concreto, “de cada qual de acordo com sua capacidade, a cada qual de acordo com suas necessidades” históricas, máxima popularizada por Karl Marx, se fossem vivos, teriam uma experiência única: a de ver aquilo que predisseram. Enquanto o romântico socialista Orwell veria nisso uma forma de opressão perpetrada por uma deturpação de sua ideologia, o perspicaz Chesterton diria que essa é a consequência natural da contemporaneidade: nem mais, nem menos. De toda sorte, creio que ambos compartilhariam a convicção de que seus “avisos” teóricos e literários se materializaram sem surpresa alguma. Aliás, causaria espanto a ambos caso isso não se concretizasse.
Alguns podem dizer que há uma verdadeira cruzada cultural em curso com o objetivo de destruir o que resta da civilização e que um de seus desdobramentos é na linguagem. Por força do hábito e em um sentido figurado, as Cruzadas sempre servem para indicar uma tentativa empreendedora para extirpar um mal. Na onda das adaptações e substituições de sentido, creio que relegar os importantes movimentos militares que auxiliaram na estruturação do Ocidente a interesses ideológicos que buscam a aniquilação da tradição é uma opressão desmesurada com os “opressores”. O correto seria chamar de jihad, afinal, tudo que estes progressistas desejam é a submissão total ou a morte de seus inimigos. O verdadeiro progresso é avesso ao progressismo.
João L. Roschildt é professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp) e autor de “A grama era verde”.
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