Infelizmente, o direito de escolha dos consumidores está novamente sendo atacado pelas forças do obscurantismo funerário e do dirigismo estatal descontrolado. No ano passado, em plena pandemia da Covid-19, a prefeitura de Curitiba propôs uma lei que dificulta ainda mais a escolha por uma funerária na capital paranaense. Antes da Lei 15.620/2020, caso alguém que não mora em Curitiba viesse a falecer na capital, seus familiares poderiam escolher qualquer empresa funerária de fora da cidade ou optar pelo sorteio entre as funerárias concessionárias. Com a nova lei, a escolha ficou restrita somente às funerárias sediadas na cidade de residência do falecido ou ao sorteio de funerárias em Curitiba. Vale ressaltar que sempre foi necessário que a empresa de fora estivesse previamente cadastrada para que o atendimento fosse liberado – e esse cadastramento é bem rigoroso, envolvendo apresentação de alvará, documentos dos funcionários, dos veículos e certidões de regularidade fiscal.
Para entender a situação, dou um exemplo. Consideremos um cidadão morador de Pinhais que estivesse tratando um câncer e morresse num hospital de Curitiba. Antigamente, antes da nova lei, caso a família optasse por velar e sepultar o falecido fora da capital, poderia escolher livremente qualquer empresa regularmente cadastrada para prestar o serviço funeral, havendo inclusive a opção de se submeter ao rodízio de funerárias em Curitiba. A família poderia, por exemplo, designar uma funerária de Fazenda Rio Grande para fazer a remoção e o velório de seu ente querido. Isso é muito comum, mas não porque funerárias da região metropolitana fiquem patrulhando as portas de hospitais ou do IML, como abutres... Mas porque a maioria das famílias brasileiras tem plano funerário (mais de 60%) e opta pela empresa credenciada junto ao plano, para obter atendimento mais célere e sem custos. Afinal de contas, elas já escolheram com antecedência quem as atenderia, após pesquisarem no mercado entre os diversos planos disponíveis.
Agora, com a nova lei, essa mesma família pode optar somente por empresa regularmente cadastrada em Curitiba e sediada em Pinhais (local de residência do falecido no exemplo ilustrativo), ou então se submeter ao rodízio entre as concessionárias da capital, numa flagrante ofensa ao seu direito de escolha como consumidor-usuário.
Em vez de preservar os direitos do consumidor-usuário, a nova lei os suprime em nome de uma suposta “tranquilidade” de não ser importunado pela oferta de serviços funerários
Após a aprovação da Lei 15.620, um grupo de 12 deputados estaduais ingressou com ação no Tribunal de Justiça do Paraná questionando a sua constitucionalidade (ADI 0028440-87.2020.8.16.0000). O julgamento da questão foi iniciado no dia 7 de dezembro de 2020, quando o relator da ação, desembargador Fernando Paulino da Silva Wolff Filho, votou pela inconstitucionalidade da lei. Contudo, o desembargador Sigurd Roberto Bengtsson pediu vistas e o julgamento foi retomado no dia 1.º de março de 2021, com um voto divergente.
Temos combatido com veemência visões equivocadas e preconceituosas sobre o setor funerário no Brasil. Particularmente em Curitiba cristalizou-se a ideia de que a prefeitura está correta em dificultar a escolha das famílias, pois a possibilidade de muitas empresas poderem oferecer seus serviços à família enlutada seria garantia certa de desrespeito à dignidade e à honra do falecido. E isso somente pode ser evitado limitando-se a prestação de serviços a empresas de Curitiba ou às que forem sediadas no município de residência da pessoa falecida.
Ora, não há nenhuma lógica nisso. Não é justo, nem adequado, nem inteligente descrever genericamente empresas do setor que não integram o rodízio de Curitiba como “mercadores da morte que, como verdadeiros abutres, cercam a família enlutada, competindo entre si para oferecer preço menor, importunando e ferindo a dignidade da família”. Para quem conhece o setor funerário ou para aqueles que têm o mínimo de bom senso, a validade dessa argumentação não sobrevive ao mais breve raciocínio. Como se pode dizer que restringir a escolha somente às empresas sediadas na cidade onde o falecido residia melhora a qualidade do serviço, visto que não houve na Lei 15.620 a introdução de qualquer critério de qualificação das empresas? O local de sede da empresa não é evidência da qualidade de seus serviços, pois podem existir empresas boas ou ruins em qualquer cidade.
Pela nova lei, se a empresa for da cidade de domicílio do falecido e estiver cadastrada, ela pode atender, pouco importa a sua estrutura, a idade de sua frota, a qualificação de seus funcionários, o conforto de suas instalações. Nada disso é avaliado pelo município de Curitiba. A única consequência da lei é tornar o consumidor-usuário refém de um número restrito de empresas!
Outro ponto que desmonta essa argumentação é que, se a declaração de inconstitucionalidade da lei vai causar uma invasão de “abutres” funerários em Curitiba, que vão importunar as famílias, então isso equivale a dizer que a situação anterior à Lei 15.620 era exatamente essa. Ou seja, que antes da lei de 2020 reinava o caos e diuturnamente famílias eram desrespeitadas e tinham sua honra violada por funerárias de fora de Curitiba. Mas onde estão as evidências disso tudo? As matérias de jornal noticiam abusos? As investigações policiais? Os processos judiciais? Não há nada, porque isso nunca foi a realidade!
A restrição imposta pela Lei 15.620/2020 também se mostra uma intervenção estatal restritiva que é constitucionalmente ilegítima, pois não atende ao princípio implícito da proporcionalidade. Em primeiro lugar, porque não é o meio adequado de se resolver a questão, já que, em vez de preservar os direitos do consumidor-usuário, estes são suprimidos em nome de uma suposta “tranquilidade” de não ser importunado pela oferta de serviços funerários. Além disso, é uma restrição desnecessária, haja vista que há outros meios menos danosos de se obter o mesmo objetivo (fiscalização, inspeção dos veículos na remoção, cadastro prévio com envio das fotos das instalações etc.). A livre escolha por prestadora de serviços é mais benéfica não somente por preservar o direito do consumidor-usuário, mas também por não impedir que os abusos sejam combatidos por outros meios, como já era feito em Curitiba antes da lei questionada e como ocorre em diversas outras capitais do país (Porto Alegre, Cuiabá, Florianópolis, Salvador, Fortaleza etc.). Também se pode afirmar que a restrição imposta pela lei não é proporcional, pois fica evidente que não há um equilíbrio entre o custo/benefício. O suposto benefício (não importunação de clientes), que pode ser facilmente obtido por outros meios, é ínfimo se comparado aos valores e direitos fundamentais do consumidor-usuário que são restringidos (direito à igualdade, liberdade religiosa, proteção do consumidor etc).
Por que Curitiba pode mandar no serviço funerário de um velório e sepultamento que será feito em Pinhais ou Almirante Tamandaré ou qualquer outro município, determinando quais empresas podem ou não podem atuar?
E complemento perguntando: qual é a lógica de autorizar ao município de Curitiba legislar sobre um assunto que vai além de sua fronteira territorial? Em outras palavras, por que Curitiba pode mandar no serviço funerário de um velório e sepultamento que será feito em Pinhais ou Almirante Tamandaré ou qualquer outro município, determinando quais empresas podem ou não podem atuar? Não é constitucional, como muito bem já demonstrou o ministro Dias Toffoli ao analisar o caso da Lei 15.620/2020 no processo de Suspensão de Liminar 1.352 PR: “A essa mesma conclusão chego no tocante à matéria concernente à competência municipal para legislar sobre serviço funerário, sobre a qual destaco decisão monocrática do ministro Marco Aurélio, que, ao negar seguimento ao RE 237.104/SP (DJe de 14/9/2009), afirmou que não ofende a Constituição Federal (artigo 30, I e V) o entendimento de que a legislação municipal não pode colocar obstáculos ao transporte de cadáveres que se destinem a outros municípios – por envolver questões que transcendem os lindes físicos do município, da competência dos estados”.
Por fim, é preciso combater a imagem distorcida e totalmente falsa de que empresas de fora de Curitiba sejam “abutres”, que atuam ofendendo a dignidade do falecido e sua família, “mercadejando o sofrimento”. O setor funerário vem se profissionalizando intensamente em localidades em que as autoridades não avançam sobre o setor privado e o direito do consumidor. Vejamos o exemplo do grupo Cortel, do Rio Grande do Sul, que opera em diversos estados e está em vias de abrir capital na bolsa de valores de São Paulo. Vejamos o exemplo do grupo Zelo, de Minas Gerais, que vem crescendo exponencialmente e acaba de receber um aporte de R$ 350 milhões de um fundo de investimentos. Vejamos o exemplo do grupo Vila, sediado no Rio Grande do Norte e com forte atuação em todo o Nordeste, que tem hoje mais de 1 milhão de vidas em sua carteira de planos funerários. São grandes empresas que operam diversos empreendimentos e oferecem serviços de padrão internacional aos seus clientes, da mais alta qualidade e seriedade. E pergunto: qual é a grande empresa do setor funerário aqui no Paraná que se compare a essas em porte e qualidade da infraestrutura? Não existe nenhuma!
A conclusão inescapável é de que a Lei 15.620/2020 na verdade é uma medida protecionista criada para privilegiar as empresas funerárias da capital, direcionando mais atendimentos para o rodízio, em que a prefeitura pode cobrar a outorga de até 21,3% sobre o faturamento bruto de tudo que é vendido. Esse é o verdadeiro interesse da prefeitura de Curitiba: cobrar o seu porcentual sobre aquilo que é vendido pelas funerárias do rodízio e proteger algumas poucas empresas, nas mãos de algumas poucas famílias, que operam em um sistema arcaico de preços tabelados e concorrência suprimida. Infelizmente, o maior prejudicado com tudo isso é o cidadão e a sociedade em geral, que tem o seu bem-estar econômico diminuído, conforme está exposto na Nota Técnica 06016/2013/DF, que analisou o sistema de funerárias de Curitiba.
Espero que essas colocações possam contribuir para o debate sobre o assunto. A análise do segmento funerário não pode ser contaminada por um discurso interesseiro e preguiçoso da prefeitura de Curitiba, que prefere garantir o ingresso de receita fácil protegendo privilégios de um pequeno grupo de empresas que estão a salvo de uma fiscalização competente.
Luis Henrique Kuminek, formado em Administração de Empresas, é diretor da Luto Curitiba.
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