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Felipe Lima

Durante os últimos cinco meses da vida de Robespierre, quando concentrou um poder praticamente tirânico sobre a França, mais de 2 mil pessoas foram guilhotinadas em Paris, uma quantidade mais de cinco vezes superior ao que havia sido morta nos 11 meses que precederam o reinado do Terror. Na biografia de Ruth Scurr sobre essa importante figura da Revolução Francesa, o próprio título já resume de forma sucinta a imagem desse perigo: Pureza Fatal.

Não foram a hipocrisia ou as ambições materiais que tornaram Robespierre uma ameaça tão grande à paz, e sim sua convicção de que ele e o povo eram uma só coisa. O Incorruptível, como era conhecido, seria a mão sangrenta executando com fanatismo as ideias de Rousseau. Robespierre seria o instrumento da “vontade geral”. A visão de uma sociedade ideal, livre dos “pecados” da aristocracia, da miséria e da corrupção, faria com que ele acreditasse ser o veículo da Providência que levaria a França para um futuro perfeito.

Quem enxerga na política um instrumento de purificação e redenção está a um passo do totalitarismo

Política é a arte do possível, como dizem. Sistemas democráticos são imperfeitos, corruptos e, muitas vezes, chatos. Não raro surgem líderes que prometem acabar com tudo isso, limpar todo o sistema, pôr fim na corrupção. Tais salvadores da Pátria seduzem com sua “imaginação totalitária”, para usar o título do excelente livro que Francisco Razzo lançará esse mês pela Record. São religiões políticas que substituem Deus, e oferecem aos crentes a promessa de um paraíso terrestre.

Razzo explica: “A parceria do poder político com a pretensão de verdade absoluta produz a ‘religião política’ — essa estranha quimera fruto da modernidade. A religião política descreve bem a arrogância do homem em querer buscar um espaço sentimental de expectativa para racionalizar e fazer emergir o ‘novo homem’ e a ’nova sociedade’ em todos os âmbitos de sua existência por meio do ato político redentor”.

Quem enxerga na política um instrumento de purificação e redenção está a um passo do totalitarismo. O grande risco quando os governantes abusam do poder é justamente abrir o caminho para tais “messias”. A historiadora Barbara Tuchman, analisando o racha que o protestantismo representou para a Igreja Católica nos séculos 15 e 16, conclui que “essas três atitudes incompatíveis – indiferença ao crescente descontentamento dos fiéis, preocupação de autoengrandecimento, ilusão de status invulnerável – caracterizam aspectos persistentes da insensatez”.

Quando os caciques políticos se julgam inatingíveis, tendem a corromper tanto o sistema a ponto de produzir uma demanda revolucionária no povo. Como sabia Edmund Burke, que viu a destruição causada pelos radicais jacobinos: “A raiva e o delírio destroem em uma hora mais coisas do que a prudência, o conselho, a previsão não poderiam construir em um século”. Por não realizarem as reformas necessárias, ainda que imperfeitas, esses governantes acabam incentivando uma revolução sangrenta: “Não ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na França e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. [...] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação que não era possível fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?”

As abstrações seduzem, assim como a ideia de expurgar toda a corrupção da face da Terra. Poucos representam maior ameaça às liberdades que aqueles imbuídos de uma crença fanática em sua própria pureza e missão. Muito sangue inocente já foi derramado em nome dos ideais pregados por esse tipo de gente, e devemos estar sempre alertas para seu perigo.

Como o universo dos incorruptíveis é imaginário e, portanto, nulo, conclui-se que o universo dos corruptos abrange a totalidade dos homens. Exceto, naturalmente, os Incorruptíveis, ou aqueles que nisso acreditam. Esses são as verdadeiras ameaças. “O que sempre fez da Terra um inferno foi o fato de o homem tentar torná-la seu paraíso”, disse o poeta Höelderlin. Em nome do “povo”, as maiores atrocidades foram praticadas.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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