A indústria do tabaco alimenta-se da fraqueza duplamente: além de recrutar novos fumantes entre adolescentes, vulneráveis à publicidade, coopta produtores oferecendo a famílias pobres no campo, sob a roupagem de “negócio da China”, condições altamente prejudiciais. Vejamos, com algum detalhamento, as duas faces desse problema.
Adolescentes são atraídos para o tabaco com o objetivo de substituir fumantes que largam o vício ou simplesmente morrem. Estima-se que metade dos fumantes crônicos morra em função de doenças relacionadas ao hábito de fumar. Documentos internos da indústria do tabaco, revelados nos Estados Unidos por ordem judicial, mostram que empresas de tabaco “estudaram os hábitos de fumar de jovens e desenvolveram campanhas de marketing voltadas diretamente para eles”, conforme notou, em estudo recente, a Aliança de Controle do Tabagismo. Exemplifica esse esforço o “Projeto Arquétipo”, da Philip Morris, desenvolvido na década de 1990, segundo o qual, na publicidade dirigida aos adolescentes, a empresa deveria enfatizar os seguintes pontos: “fumar é para pessoas que gostam de correr riscos, não têm medo de tabus e veem a vida como uma aventura”; “a popularidade da marca e a escolha [dessa marca] vão reforçar a integração e a identidade do consumidor em um grupo”; nas campanhas, devem ser utilizadas imagens que remetam a ideias de “crescimento, busca e luta”, dando-se ênfase aos elementos ritualísticos do fumar (particularmente fogo e fumaça).
A indústria do tabaco, em outras palavras, explora ansiedades características de um complexo período de transição, induzindo adolescentes a tomar decisões nocivas, sob o argumento subliminar de que o cigarro é um instrumento eficaz de autoafirmação. O hábito de fumar, em resumo, é apresentado aos adolescentes como uma forma simples e relativamente barata de demonstrar – ou pelo menos simular – “maturidade”. Duas consequências negativas dessa estratégia devem ser ressaltadas: ao fornecer aos adolescentes falsos critérios de maturidade, a indústria tabagista torna mais complicado o efetivo processo de amadurecimento; e, apresentados cedo ao cigarro, os jovens, na altura em que se tornam capazes de avaliar melhor as próprias escolhas, estão já viciados e tendem a ter grande dificuldade para abandonar o cigarro, ainda que desejem fazê-lo.
A indústria tabagista, portanto, escraviza seus consumidores, extraindo deles recursos, com bizarra frieza, até a morte. Como é possível que uma atividade econômica tão nociva à sociedade subsista? A explicação é bastante simples: não se dá importância suficiente ao fato de que a indústria tabagista gera para a sociedade muito mais prejuízo do que lucro. Se os fabricantes de cigarro tivessem de arcar com os danos, no âmbito da saúde pública, gerados pelo hábito de fumar (isto é, se as “externalidades” fossem internalizadas), as empresas desse ramo rápida e fatalmente chegariam à falência. Sobrevivem e até prosperam apenas porque lançam nas costas da população e do Estado o impacto de sua irresponsabilidade, recolhendo lucros, como fossem urubus, em meio a destroços. Comportam-se como mineradoras: tomam para si o ouro e deixam para trás um imenso buraco.
A indústria tabagista causa mal, também, a famílias pobres no campo
Isso não é tudo. A indústria tabagista, como antecipado, causa mal, também, a famílias pobres no campo. No Paraná, o fumo é cultivado, em geral, na região Centro-Sul, com mão de obra familiar, em pequenas propriedades suscetíveis aos incentivos oferecidos pela indústria tabagista: crédito para custeio, seguro para a produção e comercialização pré-contratada.
Na prática, o “negócio da China” oferecido pela indústria aos produtores é altamente nocivo. Vinculado a um único comprador, o agricultor perde poder de barganha: recebe tanto quanto a indústria deseja pagar, com base em avaliação unilateral da qualidade do fumo. Tendo recebido recursos para produzir, sem a garantia de receber o suficiente para quitar as dívidas contraídas, é comum que o fumicultor acabe enredado em dívidas, já que, para dar continuidade às suas atividades, precisa pegar novo empréstimo junto à indústria mesmo sem ter pago o anterior integralmente. O agricultor, dessa forma, acaba refém de seu suposto benfeitor. Além disso, há o problema das doenças: em função do contato direto com a nicotina e com agrotóxicos utilizados na lavoura, os fumicultores frequentemente adoecem, conforme amplamente documentado pelo Instituto Nacional do Câncer, assim como por outras organizações.
A fumicultura, portanto, não é uma atividade econômica comum, é, na verdade, um problema grave a ser resolvido com urgência. Como fazê-lo? Sugere-se aqui uma resposta lógica: se há incentivos fortes, fornecidos pelo setor privado, ao cultivo de um produto nocivo à saúde, deve haver incentivos ainda maiores, fornecidos pelo poder público, para o cultivo de produtos benéficos à saúde. O combate à fumicultura, em outras palavras, pode ser tratado como oportunidade para ampliação da área dedicada, por exemplo, ao cultivo de alimentos orgânicos, livres de agrotóxicos, em nosso estado. Trata-se de articular a política agrícola à política de saúde. Trata-se, ainda, de proteger o solo e as fontes de água do risco de contaminação por agrotóxicos.
Vejamos, a seguir, algumas medidas possíveis nesse sentido. O governo federal, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, tem oferecido apoio financeiro aos municípios para aquisição de alimentos da agricultura familiar, preferencialmente orgânicos, destinados à merenda escolar. O governo do Paraná deve oferecer contribuição semelhante, com vistas a garantir cumprimento integral da Lei Estadual 16.751/10, que instituiu a merenda escolar orgânica no Paraná.
É necessário, além disso, que o governo estadual ofereça condições adequadas de trabalho ao Centro Paranaense de Referência em Agroecologia (CPRA), bem como ao Instituto Agronômico do Paraná (IAP), de forma a estimular o desenvolvimento de técnicas que aumentem a produtividade da agricultura orgânica, com vistas a elevar a renda do produtor e reduzir custos para o consumidor final. Para difusão de eventuais avanços técnicos, é fundamental o trabalho da Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). Também podem ser envolvidas no esforço de ampliação da produção orgânica, tanto no plano da pesquisa quanto no plano da extensão rural, universidades públicas, estaduais e federais.
Outro aspecto da questão diz respeito à certificação da produção. Desde 2010, produtos orgânicos precisam receber um selo, que funciona como garantia de qualidade, facilitando a identificação pelo consumidor de produtos livres de agrotóxicos. O poder público deve trabalhar para reduzir os custos de certificação, sobretudo por meio de apoio a programas de certificação participativa, a exemplo do desenvolvido pela Rede Ecovida. Ao mesmo tempo, o programa de certificação gratuita, liderado pelo TecPar, deve ser ampliado, de modo a inserir em grandes mercados maior quantidade de pequenos produtores. Deve ser seriamente avaliada, ainda, a possibilidade de “certificação negativa”, isto é, que produtos agrícolas cultivados com a utilização de agrotóxicos sejam também identificados com um selo, de modo que o consumidor saiba que está levando para casa um produto que oferece riscos à saúde.
Outras medidas poderiam ser sugeridas. Para viabilizar iniciativas de conversão produtiva, particularmente em benefício dos fumicultores, certamente serão necessárias linhas de crédito especiais, com prazos longos de carência e taxas de juro reduzidas. Além disso, seriam também fundamentais medidas de apoio à comercialização, com destaque à realização de feiras livres, de modo a facilitar o contato direito de produtores com consumidores. A eliminação de atravessadores reduz custos para o consumidor e aumenta a remuneração dos produtores. Ainda no plano do apoio à comercialização, seria aconselhável a criação de uma vasta rede de mercados municipais, espalhados por todo o estado, para que produtores agrícolas não fiquem reféns de grandes redes de distribuição, que encarecem preços de forma desnecessária, dando à população a impressão equivocada de que produtos orgânicos são itens de luxo.
É imperativo, ainda, que sejam criadas amplas zonas de proteção da “agrobiodiversidade”, nas quais alimentos orgânicos possam ser cultivados livres do risco de contaminação por agrotóxicos ou transgênicos oriundos de lavouras convencionais. Sobre esse tema, é recomendável a leitura de relatório elaborado, em 2014, pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Organizar o território tendo em vista a proteção de bens e interesses coletivos é uma das funções principais do Estado. Ao não exercê-la, dando livre vazão aos interesses dos mais fortes, o Estado renuncia à sua vocação, colocando em risco a própria legitimidade.