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| Foto: Chip Somodevilla/AFP

“Não sou boazinha assim, eu tenho raiva, ódio mesmo, e falei o que falei também por causa disso.” (Diva Guimarães, professora aposentada, neta de escravos, falando na última Feira Literária Internacional de Paraty – Flip. Veja o seu depoimento sobre racismo e educação no Brasil)

“Fez, então, um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!’” (João 2, 13-25)

“Temos de acabar com a política de direitos humanos no Brasil. Isso é uma praga, é um câncer.” (deputado federal Jair Bolsonaro, pré-candidato à Presidência da República, entrevistado em um recente programa de televisão)

Nos dias 11 e 12 de agosto, centenas de militantes de extrema-direita marcharam em Charlottesville, no estado da Virgínia, sudeste dos Estados Unidos. Convocados por um novo movimento que se propõe a unir direitistas de diversas facções, denominado Unir a Direita (Unite the Right), integrantes da Ku Klux Klan, neonazistas e afins juntaram-se para expressar a sua farta coleção de ódios – dirigidos a negros, judeus, muçulmanos, hispânicos, gays, esquerdistas... basicamente, a todos que não sejam brancos, heterossexuais, “cristãos” (!) e de direita.

Se a história do nazifascismo e das milícias segregacionistas do sul dos EUA não fossem suficientes para esclarecer o espírito do ato, um dos militantes de extrema-direita acelerou um carro na direção de um grupo que protestava contra as manifestações explícitas de racismo (no sentido mais amplo do termo) e de culto a ideologias marcadas por ideias e práticas escravocratas e genocidas. Matou uma pessoa e feriu 19. Um ato terrorista, e um crime de ódio.

Há cerca de 100 anos, militantes políticos incendiavam e explodiam caixas públicas de correio nas ruas de Londres. Recentemente retratadas no filme As sufragistas, lançado em 2015, elas lutavam pelo direito das mulheres ao voto. Seus atentados, além de dano ao patrimônio coletivo, implicavam a destruição de correspondências. Algo como, hoje, apagar mensagens, pessoais e comerciais, de e-mail, WhatsApp, Messenger ou outros meios de comunicação digital juntamente com todos os possíveis backups desses textos.

Sejamos francos: todos conhecemos o sentimento de ódio. Isso nos permite identificá-lo nos outros

No ato mais espetacular das sufragistas britânicas, uma delas atravessou a cerca que separava o público da pista de competição e foi atropelada por um cavalo em disparada. Não era uma corrida qualquer, mas “O Derby”, provavelmente o mais prestigioso evento esportivo da Inglaterra naquele começo de século 20. E o animal que colidiu com a mulher foi nada menos que o cavalo do rei. Emily Davison nunca recobrou a consciência e morreu em decorrência dos ferimentos quatro dias depois. Qualquer que seja a interpretação que se adote em relação às intenções da militante – se ela queria se imolar pela causa ou se pretendia prender uma flâmula do movimento sufragista ao cavalo –, ela, no mínimo, assumiu graves riscos para si mesma e outras pessoas em nome de propaganda política para promover uma causa.

Diferentemente dos nazistas, fascistas e racistas, que costumam expor seus ódios com entusiasmo, é razoável esperar de quem luta por igualdade de direitos, mais justiça e democracia que seja motivado, sobretudo, por melhores sentimentos. Senso de dignidade e de justiça, compaixão, generosidade, desejo de liberdade para si mesmo e para os outros... Mas será plausível que gente disposta a riscos e violências, mesmo que por ótimas causas, não se alimente também do combustível do ódio, ainda que dirigido não a outras pessoas, mas ao que entendem como opressão, o statu quo ou, como diria o capitão Nascimento de Tropa de elite 2, o “sistema”? Só se, em vez de meros humanos, como eu e os outros que conheço, forem anjos ou Buda reencarnado.

“Nada que é humano me é estranho.” Essa frase, de Terêncio, diz algo tão evidente quanto frequentemente esquecido, negado ou camuflado.

Sejamos francos: todos conhecemos o sentimento de ódio. Isso nos permite identificá-lo nos outros. E muitos de nós não temos a biografia marcada por experiências contínuas e sistemáticas de injustiça, opressão, violência, humilhação e exclusão comparáveis, por exemplo, às vivências daquelas operárias londrinas retratas no belo filme de Sarah Gavron (disponível via serviços de cinema à la carte e, em versão integral e legendada, no YouTube) ou de muitos brasileiros que, como elas, nasceram desprivilegiados. Deveríamos saber que quem passa ou passou por essas experiências tem mais razão para ter ódio.

A percepção da universalidade existencial e ética da condição humana, igualmente precária, mas também capaz de iluminação ou redenção, independentemente de tribo, cor, gênero e outras características inatas, é central, por exemplo, no Novo Testamento (por isso o “!” em relação a “cristãos” segregacionistas) – no qual, aliás, o Deus Filho também tem momentos de, no mínimo, revolta e fúria. Dois milênios depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos começa proclamando: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. No contexto deste artigo, podemos alongar essa afirmação reconhecendo – como fazem pesquisadores e teóricos de diversas áreas, como o psicobiólogo Jaak Panksepp e o neurocientista Mark Solms – a igualdade humana também no tocante a experiências e estados emocionais básicos.

Do mesmo autor:Imprensa uníssona, democracia entre aspas (20 de junho de 2017)

Leia também:  A democracia fraturada (editorial de 2 de julho de 2017)

O ódio integra a paleta emocional humana, manifestando-se nos indivíduos com diferenças – importantes – de intensidade e frequência. E, segundo outro estudioso das emoções, o psicanalista, escritor e professor do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker, se diferencia em dois tipos.

Há um tipo de ódio que, dirigido a uma pessoa ou um grupo, nasce de um intenso desejo frustrado de ser enxergado e escutado, de ter a sua existência, verdade e identidade tratadas como legítimas, reconhecidas. Lembremos de momentos de desentendimento e conflito acirrados, quando pessoas se aproximam do limite da violência ou o ultrapassam e, mesmo que não partam para a agressão física, falem e ajam expressando destrutividade. É muito comum que no âmago afetivo desse tipo de situação e atitude haja um clamor por reconhecimento e compreensão desesperadamente malogrado.

O motivo da briga odienta, no fundo, está menos nos adjetivos que um atribui ao outro – às vezes aos gritos – e mais em verdades e atributos próprios que cada um valoriza em si mesmo e precisa que o outro reconheça e legitime. É decorrência de um aspecto fundamental da condição humana: somos seres sociais cujas identidades só se constituem na relação com os outros. “Eu sou cidadão, contribuinte, cliente, sócio... e você tem de me reconhecer e tratar como tal”, clama o indivíduo A. “Você não reconhece o meu amor, minha dedicação, minhas dores”, reclama o sujeito B. “Somos tão humanos, dignos e merecedores de direitos quanto vocês”, diz o grupo C.

O ódio motivado pela percepção de que, apesar dos nossos esforços, não somos reconhecidos em um sentido vital, indispensável para uma existência tolerável, é como um sintoma, uma febre. Pode causar danos, mas também, alertando e incomodando, possibilitar uma solução, seja uma nova abordagem do outro ou o encontro de um jeito diferente de sermos o que queremos ser mesmo sem o reconhecimento daquele outro lá.

Há um tipo de ódio que, dirigido a uma pessoa ou um grupo, nasce de um intenso desejo frustrado de ser enxergado e escutado

Mas há um tipo de ódio diferente, que não nasce de desejo de reconhecimento e, portanto, de conexão e convivência. Pelo contrário: é a própria negação da possibilidade de coexistência. Ódio que não se funda numa experiência intolerável do não reconhecimento de si pelo outro, mas na percepção de que o outro como tal é essencialmente intolerável, que sua própria existência e identidade põem em xeque a existência e a identidade do portador desse ódio.

O neonazista e o membro da Klu Klux Klan não clamam pelo reconhecimento que o judeu e o negro lhes devem. A sua autolegitimação demanda a deslegitimação do outro, que precisa ser subjugado e mantido num plano de inferioridade ou simplesmente destruído. E esse outro pode ser o estrangeiro, o torcedor rival, o gay, o trans, o morador da favela, o praticante de certa religião, o presidiário...

Esse ódio é um apodrecimento. Corrói seu portador e ameaça a sociedade. Como no caso do primeiro tipo de ódio descrito por Dunker, este também é um chamado para a ação, mas, desta vez, no sentido da fruição plena, apoteótica do próprio ódio. Sem os limites impostos pelas constituições e leis das democracias contemporâneas, muito menos pelos “tais” direitos humanos. Um estado de espírito hoje bem ilustrado na política brasileira pela atuação e pelo discurso do deputado Jair Bolsonaro, pré-candidato à Presidência da República que tem figurado em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto. Entre os milhões de brasileiros que declaram querer fazer do militar da reserva o próximo presidente está, como ficaram sabendo em 24 de agosto os leitores do site UOL, o atual comandante da Rota, tropa de elite da PM paulista.

Os ódios, que, em alguma medida, todos nós conhecemos estão se escancarando mesmo em lugares e momentos nos quais, até pouco tempo atrás, se continham. Se isso é bom ou ruim, o futuro dirá. A forma com que lidaremos com eles, pessoal e coletivamente, será fator decisivo neste momento de redefinição de rumos.

Flavio Lobo, jornalista, assessor e consultor de Comunicação, é mestre em Comunicação e Semiótica.
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