“Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha de forma autônoma (...). Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”, defendeu o ministro Luís Roberto Barroso no voto que, na prática, liberou o aborto.
Não cabe ao Estado tomar partido. Mas, por meio do STF, isso foi feito. E quem toma partido do feto humano na barriga da mãe? “Meu corpo, minhas regras!” Isso também se aplica ao feto e, mesmo que o ministro se esforce para trivializar o aborto, a Constituição diz que a regra do corpo do feto é a regra do direito à vida. Incondicionalmente.
Não falaremos sobre aborto. Deixo que o grito silencioso do ser inocente, no momento de sua execução – que, aliás, é a única diferença entre o aborto e o homicídio –, clame por si. Mas falaremos sobre o papel de uma Suprema Corte, como o STF. Atuar juridicamente é sempre interpretar e há interpretações e interpretações: hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.
Ambas não partem de um dado bem concreto, isto é, do texto da lei, dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são concretizações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.
O falecido juiz Antonin Scalia dizia que a ascensão do neoconstitucionalismo importa no ocaso da democracia
O problema dessa tarefa interpretativa da realidade posta está em buscar as chaves de interpretação dessa mesma realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. No primeiro caso, a democracia vai parar na sarjeta e, no segundo, na lua.
A leitura feita acaba por reproduzir um reducionismo interpretativo e, assim, tudo passa a ser interpretação, sem que fique bem claro qual é o objeto referencial dessa atividade, isto é, qual é a realidade que, em última instância, se interpreta.
Na tradição jurídica ocidental, essa tarefa pertence a uma Suprema Corte. Inserida nesse desafio, a tentação para seus juízes recai no afã de se pretender assumir o papel de constituinte originário: isso é chamado de neoconstitucionalismo. Nessa ideia, o magistrado, sem lastro representativo, incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, nas hipóteses mais patológicas, professa um messianismo judicial, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque prudencial das opiniões dos legisladores.
Num e noutro caso, a democracia cessa e, se um juiz se diz “pela democracia”, então, resolveu inovar semanticamente. Ou demagogicamente. Aliás, não é por acaso que o falecido juiz Antonin Scalia dizia que a ascensão do neoconstitucionalismo importa no ocaso da democracia.
Nessa usurpação de papéis institucionais, já teremos ingressado no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de togados letrados. Respondo à pergunta lançada. O STF tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal quando resolve reescrever a realidade sem base no texto constitucional porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. A democracia vai parar na sarjeta. Ou na lua. E os fetos, a partir desse inusitado precedente, no lixo.