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Perdoar é uma faculdade humana. Por muitas razões se perdoa, mas a principal delas é a condição mortal do homem que o faz pressentir “um mundo cuja lei terrível e sedutora está bem distante da moral didática da cidade”, como observou Nicole Loraux ao dissecar a ética do humano na tragédia grega.

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Não por acaso, uma história do perdão só teria início com o cristianismo que revelou outra cidade que não a cívica, na qual haveria lugar para toda a humanidade. Uma história das civilizações poderia mesmo ser escrita pelo perdão. Poucas foram capazes de trazê-lo do mundo transcendente para a cidade dos homens na construção permanente de uma ética que, nesta parte do mundo, resultou na democracia.

Com as certezas sem Deus, inaugurou-se a era da guerra total, absoluta, sem trégua, limite ou responsabilidade, em que o inimigo não teria apenas de ser vencido, mas destruído e varrido.

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Dois milênios e uma infinidade de tragédias nos fizeram abandonar a ética de fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos. E por uma razão bem simples: temos que viver juntos, aprender a nos suportar, no dizer de São Paulo. A direcionalidade dessa história do perdão poderia estar consumada, não fosse o advento das certezas seculares que formataram o terrível século XX.

Com as certezas sem Deus, inaugurou-se a era da guerra total, absoluta, sem trégua, limite ou responsabilidade, em que o inimigo não teria apenas de ser vencido, mas destruído e varrido. Clausewitz teorizou-a e Ludendorf sonhou com ela. Mas foram nazistas e comunistas que a tornaram real, levando-as às últimas consequências, por outra razão também simples: a aniquilação do adversário não haveria de ser apenas física, mas completa ao ponto de fazer desaparecer seu pensamento.

Como descreveu Hannah Arendt,“quando Stalin decidiu reescrever a história da revolução russa, a propaganda de sua nova versão consistiu em destruir, juntamente com os livros e documentos, os seus autores e leitores”. Não havia na Alemanha e na Europa ocupada pelos nazistas perdão para judeus e os considerados inferiores, para prisioneiros de guerra de nacionalidades que deveriam simplesmente desaparecer e, de maneira mais ampla, para todo aquele que ousasse pensar por si próprio, como Fernand Braudel, que escreveu uma das obras mais importantes do século XX no campo de concentração de Lübeck.

Na mente totalitária não há espaço para nada além do seu absoluto. Seus professos creem que têm a chave da história. Suas certezas são tão fortes quanto seus ódios. E quando são vencidos em mais um round da luta pela História, ao receberem o perdão, recusam-no, tão cruamente como se negam a concedê-lo.

No Brasil, todas as revoluções contra o poder constituído foram sucedidas pelo perdão, na sua forma mais brasileira, a anistia, o esquecimento. A exceção, a impiedosa execução de líderes da Confederação do Equador, que escandalizou a nação e até mesmo aos militares que combateram os revoltosos, serviu para consolidar no país uma tradição de perdão, qualquer que fosse o lado vencedor dos conflitos havidos nos não poucos momentos de instabilidade e rupturas ao longo da história nacional.

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Mas tudo isso não resistiu à era das certezas que, paradoxalmente, vieram acompanhadas pelo relativismo. Vencido o nazismo e ultrapassada a decepção daqueles que, nos anos 30, haviam conhecido o que se passava na União Soviética, depois da Segunda Guerra Mundial, a abdicação moral dos intelectuais franceses perante os julgamentos de fachada promovidos pelos soviéticos nos países do Leste Europeu seguiu os argumentos dos comunistas de que a violência era necessária para atingir seus objetivos e, como todos os regimes eram violentos, a violência comunista era mais autêntica, como defendia Merleau-Ponty em sua filosofia política.

Emmanuel Mounier, o intelectual proponente de uma nova moralidade, antiburguesa e espiritualmente renovada, entendia que os julgamentos de Moscou, tais como os dos colaboracionistas franceses, era uma “crise de justiça, crise de segurança pública”. Para ele, como anotou Tony Just, “a violência é real, não somente metafórica; quando as coisas saem de controle, há uma força cega que consome sangue e liberdade. E as circunstâncias não conhecem justiça nem piedade”.

No Brasil, essas certezas chegaram com autorização para matar e produziram efeitos outros, como colocou o brasilianista norte-americano Thomas Skidmore em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo: “uma coisa a guerrilha conseguiu na América do Sul: criar governos realmente autoritários”. Convictos de que cumpriam uma missão histórica, integrantes de organizações terroristas mataram não apenas policiais ou militares da alegada ditadura que combatiam para implantar a sua, mas todo aquele que se colocasse no seu caminho, em sua maioria pessoas comuns, vigilantes, motoristas, comerciantes e estrangeiros, estes pelo mero fato de sê-los.

E quando receberam o perdão, o perdão que não lhes seria concedido pelos regimes em nome dos quais combatiam, recusaram-se a recebê-lo como tal, alimentando uma das mais duras batalhas parlamentares da V República que foi a da aprovação da Lei da Anistia em 1979, quando a oposição tentou anistiar todos os acusados de um lado e abrir caminho para a punição dos que os haviam combatido. Pela primeira vez na história do Brasil, uma proposta de anistia oferecida pelo governo que debelara um movimento insurrecional armado era invertida pelos que diziam representar os beneficiários do perdão. Estamos descobrindo agora que quando se esquece o perdão perde-se a paz.

Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador.

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