Tenho a sensação de que não li as mesmas notícias que a maior parte das pessoas nas últimas semanas. Tomara fosse um devaneio exclusivo do meu noticiário pessoal que alardeou que 70 pessoas – sim, porque antes de serem refugiados e migrantes, são pessoas, convém lembrar para aqueles a quem convém esquecer – morreram asfixiadas em um caminhão no Leste europeu, fugindo da tirania, da fome, da miséria e das violências que com elas vêm associadas. São tão descartáveis que não se sabe quem eram, de onde vinham e para onde iam; serão apenas números para engrossar as tristes estatísticas, se tanto.

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Para além de algum destaque nos meios de comunicação, bem inferior àquele da instabilidade de desvalorização das moedas, registre-se, muito pouco foi dito deste episódio bárbaro que coloca, mais uma vez, nossa civilização à prova. Será que temos mais valor pelo desvalor da moeda do que pelo atributo intrínseco que a vida humana carrega consigo?

Impossível não associar o episódio recente às circunstâncias em que milhares morreram, em câmaras de gás, no contexto dos regimes totalitários que marcaram a Segunda Grande Guerra, asfixiadas pelo ódio e pela intolerância. Foi justamente esse contexto de negacão – forjado na ótica da descartabilidade da pessoa – que deu base para a (re)construção dos direitos humanos; a partir dali, emergiu a fundação da cena contemporânea de proteção que tem como centro a defesa intransigente da dignidade e como campo de defesa tanto o cenário constitucional-estatal quanto o internacional.

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Será que temos mais valor pelo desvalor da moeda do que pelo atributo intrínseco que a vida humana carrega consigo?

Ante a isso, indagava-me se que quase 70 anos depois não aprendemos nada. Tive a infeliz certeza da resposta quando, no curso desta reflexão, deparei-me com a figura do pequeno anjo caído na praia da Turquia que tentava sair da Síria e chegar à “terra prometida”. Impossível, novamente, não fazer um paralelo e recordar a imagem da menina vietnamita (Prêmio Pulitzer de 1973) e das odiosidades que fizeram emergir uma nova arquitetura internacional global e regional de proteção aos direitos humanos.

A imagem do menino comoveu, rompeu a apatia, mas será capaz de romper a anestesia que vivemos em relação às massivas violações de direitos humanos – em especial àquelas dos milhares que tentaram atravessar o Mediterrâneo e outras fronteiras do mundo em busca de uma vida minimamente digna?! Eis o desafio contemporâneo que se coloca, de modo especial, ao direito internacional dos direitos humanos.

Um primeiro importante ponto para romper com essa ótica está na necessidade de alterar a nossa percepção sobre os próprios direitos humanos. Nesse sentido é que nos alerta David Sánchez Rubio: “tem de se apostar numa noção sinestésica de direitos humanos que nos afaste da anestesia, na qual os cinco ou os seis sentidos atuam simultaneamente, 24 horas por dia e em todo lugar”.

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As cenas chocantes que presenciamos recentemente têm de servir a mais do que premiar nossa própria permissividade; devem nos lembrar das palavras de Pessoa: “somos todos anjos de uma só asa, e só podemos voar quando nos abraçamos uns aos outros”.

Foi esse gérmen libertador que estava na gênese do direito internacional dos direitos humanos que procurou trazer, mormente com a Declaração Internacional de 1948, um conceito renovado de ser humano que rompe com a despersonalização e coisificação do homem operadas com as brutalidades das grandes guerras. Isso precisa ser resgatado: os seres humanos em sua perspectiva única e inigualável, necessariamente relacional, conectados com a realidade e diversidade que nos envolvem. Eis aí o princípio da cura desse mal anestesiante a provar-me equivocada: que aprendemos e podemos reagir!

Melina Girardi Fachin é advogada e professora da Faculdade de Direito da UFPR.