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“Do forte saiu doçura e a pluma se fez esgrima”. O referido “forte” retoma o célebre enigma de Sansão aos filisteus, aludindo a um leão abatido pelo herói e em cujo crânio formou-se uma colmeia repleta de mel (Jz 14,14). Símbolo da arte de escrever, a pluma serve também para “esgrimar” palavras, recordando que os membros da renomada Academia Francesa são condecorados com uma espada.

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Tais atributos se aplicam inteiramente à personalidade de São Francisco de Sales (1567-1622). O santo savoiano tinha, por certo, um temperamento forte e acerbo. Pela virtude, porém, revestiu-o de doçura e benquerença: “Uma colher de mel atrai mais do que um tonel de vinagre”, comentou certa vez.

Resta almejar que o santo padroeiro dos escritores e jornalistas continue a inspirá-los a desempenhar o cume de sua missão, a saber, a falar de coração a coração

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Além disso, muito “esgrimou” com sua pena. Seu estilo literário percorreu desde cartas de consolação a desamparados, passando por exortações à prática da virtude até a apologética na defesa da fé e da verdade. Sua nota tônica, porém, era a constante caridade: “A verdade que não é caritativa procede de uma caridade não verdadeira”, preconizou.

Francisco estudou com os jesuítas e formou-se em Direito Canônico e Civil na Universidade de Pádua. Deus, no entanto, o chamava para a vida sacerdotal. Após sua ordenação, foi designado a uma missão em Chablais (hoje território francês), onde calvinistas tinham rapidamente conquistado a região.

Em 14 de setembro de 1594, lançou-se numa épica aventura evangelizadora. Em Thonon, pregou na única igreja que permaneceu católica. Com efeito, os calvinistas, seja por medo seja por respeito humano, prometeram que jamais o escutariam. Mas nada o impediria de continuar o seu apostolado, ainda que em meio a calúnias – mais tarde o acusariam de estar aliado a feiticeiros –, e até mesmo diante de uma tentativa de assassinato.

Eis que aqui nos deparamos com o seu gênio: se o povo não acorria a ele, devia o santo acudir ao povo. Empenhou-se, então, a transcrever seus sermões e a distribuí-los de porta em porta, à maneira de um periódico. De fato, comentou o biógrafo Trochu: “Se São Paulo vivesse em nossos dias, ele seria um jornalista. Ora, Francisco de Sales foi aquele que, por primeiro, se tornou um deles. Ele inaugurou o apostolado da imprensa”.

Em seus vivazes artigos, podem-se notar algumas características de um jornalista íntegro. Antes de tudo, a sua incondicional busca pela verdade, cuja transmissão exige boa dose de perspicácia e intrepidez. “A verdade nunca desedifica ou causa dano”, testemunhou Santa Teresa de Jesus . Por vezes, ele se utilizava do recurso da ironia, sem, contudo, jamais desvalorizar seu interlocutor. Pelo contrário, até mesmo seus adversários admitiam que ele primava pela cordura.

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Destarte, não escrevia “com o fígado”, mas sim “com o coração”. Contudo, se este estiver tomado pela ira, ele propunha que a boca fizesse logo um “pacto de silêncio”. Tal prudência é essencial a escritores e jornalistas, pois evita a transmissão de informações precipitadas ou mesmo a debandada para puras murmurações. De fato, prognosticava o santo que, se estas fossem expurgadas da face da terra, um terço dos pecados seriam evitados.

Instava ainda a evitar o supérfluo e a excessiva familiaridade no escrever. A pluma foi feita para fazer voar os pensamentos, não para se dedicar a futilidades; foi feita, como sugere o título,para se transformar em florete quando as circunstâncias exigem, sendo ele mesmo exemplo ao defender os direitos eclesiásticos ante o Senado de Chambéry.

Ordenado bispo em 1602, São Francisco de Sales dedicou-se por inteiro às ovelhas perdidas de sua diocese,a ponto de ser cognominado de “o Cristo amável de Genebra”. O peso da púrpura episcopal, entretanto, não o afastou das atividades de escritor. Seus textos foram compilados em quase 30 volumes, destacando-se os livros Filoteia e Tratado do Amor de Deus. Sem embargo, a sua maior obra foi a sua própria vida.

Morreu em 28 de dezembro de 1622. Durante o seu embalsamento, a sua vesícula biliar foi encontrada cheia de cálculos, o que foi interpretado pela exímia paciência ante os mais ásperos azedumes de sua vida. O seu coração, por sua vez, foi conservado incorrupto, símbolo de seu amor palpitante pela verdade.

Resta almejar que o santo padroeiro dos escritores e jornalistas continue a inspirá-los a desempenhar o cume de sua missão, a saber, a falar de coração a coração – cor ad cor loquitur –, conforme o seu célebre aforismo.

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Felipe de Azevedo Ramos é padre e doutor em Filosofia.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]