O juiz de garantias e o pacote anticrime têm inspirações bem distintas. O primeiro visa garantir direitos do cidadão; o segundo, o poder punitivo do Estado. Um serve à liberdade; o outro, ao cárcere. Quiseram o destino e as circunstâncias políticas que esse encontro atípico acontecesse. Fez-se essa conexão porque ela é relevante para entender o que está em jogo.
O juiz de garantias atuaria na fase do inquérito policial e seria responsável por decidir questões da investigação, como quebras de sigilo (de dados, telefônico, bancário ou fiscal), produção inicial de provas e prisões processuais (que não se confundem com a pena). A ele incumbe atuar para que o inquérito ocorra dentro da legalidade. A outro juiz caberia o posterior papel de julgar, absolvendo ou condenando, e neste último caso, aplicando a pena.
Essa separação de papeis tem como efeito (ao menos se pretende) tirar a gestão da prova das mãos do juiz que vai julgar. Quem julga não deve investigar, quem investiga não deve julgar. Parece lógica a conclusão de que o ato de investigar pode conduzir a prejulgamentos. É justamente isso que se quer evitar. Um julgamento que se pretende justo pressupõe que o julgador não esteja contaminado pela investigação. Note-se que a confusão de papéis no processo criminal é um traço inquisitivo e ainda presente no sistema processual brasileiro. Já é passado o tempo de superar isso.
De nada adianta, porém, um juiz de garantias e outro de julgamento se for preservada uma mentalidade inquisitória. Os prejulgamentos costumam encontrar meios de burlar as normas processuais. Uma mudança de cultura jurídica é necessária, portanto, não bastando a mudança na legislação. E nesse ponto há um elo com o pacote anticrime. Além do nome redundante, a sua inspiração também o é, pois expressa uma velha mentalidade punitivista.
Embora algumas propostas absolutamente criticáveis (como a prisão após segunda instância em conflito com a Constituição e a imprópria ampliação da legítima defesa para agentes de segurança pública) tenham sido retiradas do pacote, ele preserva a sua essência.
Não cabe aqui dissecar o malfadado pacote, mas é possível identificar sua essência repressiva. Medidas como o endurecimento de regras para progressão de regime, livramento condicional e a ampliação do máximo de pena para 40 anos acarretam em algo evidente: pessoas presas por mais tempo. E isso resulta no crescimento da já superpopulação carcerária brasileira (rumo a 1 milhão de pessoas).
Desde a década de 90 o Brasil está entre os países que mais encarceram no mundo, sem que isso tenha proporcionado ganhos em termos de segurança pública. Há estudos que demonstram essa falta de correlação, mas um observador atento pode chegar à mesma conclusão. Numa visão pragmática, é injustificável a insistência na resposta neurótica e ineficaz de punir sempre mais e mais.
Destaco a importância do juiz de garantias no processo penal brasileiro, mas que fique o alerta do que vem a reboque. Ainda é tempo de se debater e refletir a maneira como se é pensada a questão criminal no Brasil, e quiçá perceber que os caminhos já trilhados conduzem a um destino bem conhecido.
Ledo Paulo Guimarães Santos, advogado criminalista, é doutor em Direito Criminal e professor de Direito Penal da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.
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