Há os que dizem que a arte imita a vida, mas o contrário também é verdadeiro. O livro Não verás país nenhum, de 1981, do escritor paulista Ignácio de Loyola Brandão, é uma distopia brasileira ambientada em uma São Paulo futurista, onde a falta de água, o calor insuportável, a poluição e o desmatamento são o pano de fundo de uma sociedade governada por políticos medíocres, autoritários e corruptos. Junto com a descrição dramática e envolvente do autor, surge um sentimento de terror e medo em nós, leitores, e uma reflexão sobre os caminhos que podemos escolher para o nosso país. Como pensar em uma verdadeira nação com tamanho caos ambiental e social?
Da ficção de Loyola Brandão para o mundo real de 2019, é inevitável a analogia. As notícias do Brasil e do mundo mostram que o ano que está se encerrando foi qualquer coisa, menos irrelevante para a história ambiental recente. Acompanhamos, no cenário brasileiro, ascender um governo inexperiente e avesso ao diálogo, que se alinhou automaticamente aos maiores poluidores do mundo, desprezou os alertas da ciência sobre as queimadas e desmatamentos, acusou e criminalizou ambientalistas e indígenas, apoiou grileiros e desmatadores.
O que dizer quando um ministro condenado por fraude ambiental assume o Ministério do Meio Ambiente? Entre suas ações no ano, um repertório de maldades que incluíram o desmantelamento financeiro e a descaracterização dos órgãos ambientais federais, acompanhados da imposição de uma lei da mordaça e demissões aos seus gestores, a impunidade sobre os que transgrediram as leis ambientais (incluindo o próprio presidente), as reiteradas tentativas de reduzir a área das unidades de conservação e a polêmica suspensão do Fundo Amazônia, apoio financeiro de países europeus que vinha amparando importantes programas para a sustentabilidade da região.
Quando o assunto é meio ambiente, muito do que se perde em termos de recursos naturais não retoma nunca mais
No agosto mais desafortunado dos últimos anos, vimos a Amazônia arder em chamas, reflexo do aumento dos níveis de desmatamento que atingiu mais de 9 mil quilômetros quadrados, a maior área perdida em mais de uma década. São Paulo sentiu a névoa escura das cinzas das queimadas e a Amazônia ficou mais próxima do resto do Brasil do que já se imaginara. No Ministério da Agricultura, mais de 400 agrotóxicos foram liberados automaticamente, com critérios dúbios, colocando em risco a saúde humana e ambiental. Além disso, a produção de cana-de-açúcar, até então restrita aos espaços já desmatados do Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, recebeu o aval para avançar sobre a Amazônia e o Pantanal.
O Brasil não saiu do Acordo de Paris, como panfletado no início do ano, mas tem sido representado internacionalmente por um ministro de Relações Exteriores negacionista. Como se os efeitos diretos da mudança de governo sobre o meio ambiente não fossem suficientes para desenhar um cenário desolador, em 2019 ainda houve Brumadinho e o vazamento de óleo nas praias, tragédias humanas, sociais e ambientais resultantes das históricas negligências no monitoramento das licenças ambientais e das atividades de alto risco. Com este panorama, se Loyola Brandão decidir escrever uma segunda parte para o livro, duvido que haja inspiração maior que o retrospecto de tudo que ocorreu ambientalmente no Brasil em 2019.
Na economia, o jargão “ano perdido” ou “década perdida” refere-se a um período relativamente curto em que os indicadores de “crescimento” não avançam conforme o esperado, mas que, passada a tempestade, retomam a algum nível de normalidade. Quando o assunto é meio ambiente, a dinâmica não é bem assim: muito do que se perde em termos de recursos naturais não retoma nunca mais. Se o ano de 2019 foi um ano de perdas significativas no sistema que garante a proteção da biodiversidade e dos serviços que o ambiente nos oferece, ainda nos resta a oportunidade de aprender com ele.
As questões ambientais tomaram conta dos noticiários nacionais e internacionais no ano que passou. Nesse ponto, líderes que se colocaram incrédulos em relação à crise climática, não reconheceram a importância da Amazônia para a estabilidade global, não assumiram responsabilidade ambiental, ou mesmo aqueles que pretenderam obter lucros políticos sobre o tema funcionaram como holofote para a situação ambiental brasileira. Isso acontece porque boa parte do mundo civilizado não quer mais deixar sua pegada indelével sobre o planeta – pelo menos não o quer conscientemente.
VEJA TAMBÉM:
- O paradoxo da pobreza humana em paraísos ecológicos (artigo de Rodrigo Penna-Firme, publicado em 27 de dezembro de 2019)
- Demonizar o produtor brasileiro não salvará a Amazônia (artigo de Daniel Nepstad, publicado em 14 de dezembro de 2019)
- O Brasil na COP (artigo de Ricardo Salles, publicado em 8 de dezembro de 2019)
A atenção mundial para a Amazônia e o Brasil também funcionou como um espelho para que nós, brasileiros, comecemos a nos enxergar como um país diferenciado, que de fato somos. O recentemente publicado Diagnóstico Brasileiro da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, documento resultante do trabalho intenso de quase uma centena de cientistas, reuniu, pela primeira vez, importantes números deste Brasil muito particular. Somos 200 milhões de seres humanos, de mais de 300 etnias, convivendo com 40 mil espécies de plantas e milhares de animais nativos. É a partir destas diversidades, cultural e biológica, que alcançamos alguns recordes mundiais, especialmente em termos de biodiversidade e produção agrícola, sendo que esta última depende, parcial ou totalmente, de serviços ambientais, como a polinização e o regime de chuvas. Porém, a pobreza e a desigualdade econômica, intensificadas no último ano, nos colocam ainda em péssimas posições nos rankings de desenvolvimento humano.
Esta singularidade brasileira é o que nos permitirá olhar para o futuro de uma forma diferenciada do resto do mundo. Temos a oportunidade de criar sistemas econômicos resilientes, inclusivos, justos e ambientalmente sustentáveis, como muita pesquisa científica já tem nos mostrado. Uma economia verde, associada a um sistema social justo e natureza preservada, poderia nos destacar comercialmente no mundo e nos levar a alçar um novo recorde: o país de economia mais sustentável do mundo. Seria esta uma utopia?
Para construirmos uma verdadeira nação brasileira, não podemos nos furtar de compreender os efeitos de nossas ações presentes para o país que desejamos no futuro. Parece-me que esta releitura completa do Brasil, considerando suas particularidades, com compromisso com as gerações atuais e futuras, não está na lista de promessas de ano novo de nossos governantes. O ano de 2020 já está batendo à nossa porta e o futuro mais uma vez se torna realidade. Depende de nós, brasileiros, escolhermos representantes comprometidos e cobrarmos dos atuais governantes atitudes que nos ofereçam um cenário futuro com o qual nos identificamos.
Marcia C. M. Marques é professora titular de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná e integra a Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.