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Olhe pela janela e observe a cidade. As ruas movimentadas, os prédios altos, os parques verdes, os comércios, as casas. Tudo isso foi planejado de alguma forma. Cada detalhe dessa paisagem urbana foi pensado e projetado por alguém, seja por engenheiros, arquitetos, técnicos ou pelas próprias pessoas que as ocupam. O planejamento urbano tem papel fundamental no desenvolvimento de cidades prósperas e bem estruturadas, uma vez que ele molda e influencia diretamente o estilo de vida das pessoas, determinando como elas vivem, trabalham e se deslocam. Nesse sentido, é preciso se perguntar: quem deve ser o responsável por planejar o futuro das nossas cidades?
Será que um único político, sentado em seu gabinete, ou mesmo um grupo restrito de especialistas, por mais capacitados que sejam, possui todo o conhecimento e informações necessárias para tomar decisões que impactarão diretamente a vida de milhares, ou até mesmo milhões, de pessoas? Embora a visão dominante do urbanismo ainda enfatize que o planejamento central é a melhor forma de organizar uma cidade, as consequências desastrosas de algumas intervenções nos mostraram que essa receita pode estar, na verdade, adoecendo o paciente.
Com um modelo descentralizado de gestão urbana, as decisões podem ser tomadas a partir da perspectiva das pessoas que vivem na cidade.
A vaidade de quem se julga capaz de planejar uma cidade inteira é fruto da ilusão de possuir um conhecimento que, na verdade, não se tem, e que provavelmente nunca se terá. O problema do planejamento urbano centralizado é que ele desconsidera as informações fragmentadas e específicas dos moradores e usuários da cidade. Inevitavelmente, essa abordagem acaba por ignorar as necessidades e desejos específicos das pessoas, o que leva a uma alocação ineficiente dos recursos urbanos.
Pense nisso como um quebra-cabeça gigante. Cada pessoa envolvida em uma situação tem uma peça única do quebra-cabeça. Ninguém tem todas as peças, e é impossível juntá-las perfeitamente para criar uma imagem clara. Essa analogia se assemelha às ideias do economista austríaco Friedrich August von Hayek, ganhador do Prêmio Nobel em 1974, que defendia que a economia é composta por interações complexas entre diversas partes que geram informações dispersas e incompletas. Segundo Hayek, tentativas de planejamento centralizado da economia realizadas por governos são ilusórias e perigosas, já que nenhum planejador central pode ter acesso a todas as informações necessárias para tomar decisões precisas.
Infelizmente, o plano diretor da maioria das cidades é retrógrado e possui leis que prejudicam o desenvolvimento urbano.
Nunca foi tão importante abordar esse assunto como agora, durante a revisão do plano diretor das cidades brasileiras, seguindo um processo estabelecido pelo Estatuto da Cidade. O plano diretor é um instrumento de planejamento urbano que estabelece diretrizes para o espaço urbano de um município. Ele determina, por exemplo, quais áreas são destinadas para uso residencial, comercial ou industrial e estabelece os limites de altura dos edifícios, além de definir a criação de áreas verdes na cidade. Além disso, o plano diretor estabelece as exigências para a construção de novos espaços e as regras de mobilidade urbana, incluindo a implementação de ciclovias, faixas para ônibus e metrô. É importante dizer que as decisões tomadas durante a revisão do plano diretor moldarão as cidades pelos próximos dez anos.
Infelizmente, o plano diretor da maioria das cidades é retrógrado e possui leis que prejudicam o desenvolvimento urbano. Um exemplo flagrante é o conjunto de regras que regem os recuos e fachadas dos edifícios, criando barreiras que dificultam os moradores de acessar os serviços de que necessitam. Essa prática se baseia em teorias ultrapassadas, como a crença no miasma, que há muito foram refutadas pela ciência. Regras desnecessárias como essa são reflexo do ambiente de restrições presente nos Planos Diretores, onde o "não pode" sempre foi o lema da política urbana brasileira.
A chave para criar uma cidade adaptada às necessidades de seus habitantes é permitir que eles planejem suas próprias vidas.
Para participarmos da discussão sobre o futuro das cidades de forma consciente e evitarmos cometer os mesmos erros do passado, é preciso adotar uma abordagem sensata, que não se deixe levar por ideias utópicas que sugerem que o Estado deve ser o único responsável por pensar as nossas cidades. Nesse sentido, incorporar uma pitada do pensamento liberal pode ser um ingrediente valioso para a receita de um planejamento das cidades que atenda verdadeiramente às necessidades das pessoas.
Embora tenha construído seu legado na ciência econômica, F. A. Hayek pode fornecer contribuições no âmbito das cidades, como evidenciado por sua influência em alguns dos mais importantes nomes do urbanismo moderno. Para Hayek, a questão nunca é se o planejamento deve ser feito ou não, mas sim sobre se o planejamento deve ser centralizado, realizado por uma autoridade que controla todo o sistema econômico, ou se deve ser descentralizado e dividido entre muitos indivíduos.
Nenhum planejador central poderia jamais acessar todo o conhecimento e as informações necessárias para criar uma ordem social otimizada.
A lendária escritora de urbanismo Jane Jacobs, que se imortalizou com a obra Morte e Vida de Grandes Cidades (1961), encontrou um ponto em comum com Hayek, apesar de atuarem em campos distintos: ambos estavam preocupados com o excesso de poder das autoridades na tomada de decisões importantes. Seguindo de perto o argumento de Hayek em O Uso do Conhecimento na Sociedade, Jacobs enfatiza que as informações essenciais para as decisões de planejamento não podem ser obtidas por meio de princípios abstratos e agregados estatísticos, mas sim através do conhecimento local das pessoas que vivem na região. Em outras palavras, ela faz uma provocação aos urbanistas da época, dizendo para que eles "esqueçam as teorias de gabinete, vamos olhar para o mundo real e ouvir o que as pessoas têm a dizer".
Com sua abordagem prática e realista, Jacobs argumenta que a chave para criar uma cidade adaptada às necessidades de seus habitantes é permitir que eles planejem suas próprias vidas. Afinal, ninguém conhece melhor as peculiaridades e demandas de um bairro do que seus próprios moradores. Para ela, os planejadores não podem acessar todas as informações que os moradores locais possuem, mesmo os mais bem-intencionados. Portanto, a única maneira de construir uma cidade verdadeiramente inteligente e adaptada é confiar nas pessoas que vivem nela.
Somos interdependentes em uma rede complexa e interconectada, e é essa rede invisível de cooperação humana que permite que a sociedade prospere e evolua.
Há alguns séculos, muito antes das ideias de F. A. Hayek e Jane Jacobs, o pai da economia moderna e pioneiro do liberalismo econômico, Adam Smith, já havia percebido que a ordem de cooperação humana vai além da nossa compreensão. Ele usou a metáfora da "mão invisível" para descrever esse padrão indeterminado que surge a partir da ação individual de muitos. Essa ordem de cooperação é possível porque o conhecimento humano é disperso e fragmentado, e cada um de nós depende de serviços e produtos oferecidos por pessoas que sequer conhecemos. Somos interdependentes em uma rede complexa e interconectada, e é essa rede invisível de cooperação humana que permite que a sociedade prospere e evolua. Nenhum planejador central poderia jamais acessar todo o conhecimento e as informações necessárias para criar uma ordem social otimizada. É a ação livre e espontânea das pessoas que gera soluções criativas e inovadoras.
Hayek complementa essa ideia, afirmando que o conhecimento está em constante evolução, disperso entre milhões de indivíduos que estão continuamente examinando seu ambiente e processando informações. Esse processo modifica as condições e se reinicia continuamente, tornando assim impossível transferir essa capacidade da sociedade para uma autoridade central que possa controlar as vidas e atividades dos indivíduos.
Tanto na ciência econômica quanto no urbanismo das cidades, a história nos revela um padrão inquestionável: a tentativa de planejamento centralizado sempre acaba gerando distorções que prejudicam as pessoas. Desde os tempos dos czares, imperadores e profetas até os dias atuais, nossos burocratas ainda insistem na ideia arrogante de que podem moldar o mundo de acordo com suas vontades. As falhas do planejamento estatal são demonstradas de forma mais clara pela experiência do socialismo do Leste Europeu, que transformou as cidades em prisões cinzentas e desumanas, ou pela realidade ainda presente em Havana, capital de Cuba, que sofre com escassez generalizada e com infraestrutura caindo aos pedaços.
Mas, afinal, como convencer as autoridades responsáveis pelo planejamento urbano de que o caminho mais sensato é permitir que a liberdade e a autonomia individual guiem o processo? Como convencê-los de que, ao invés de impor um plano rígido e inflexível, devemos permitir que a cidade cresça e se adapte naturalmente às necessidades de seus habitantes? A resposta é complexa, mas certamente começa por garantir que burocratas e grupos de interesse não monopolizem a definição dos novos Planos Diretores das cidades.
O urbanista francês Alain Bertaud alerta que restrições no desenvolvimento urbano podem reduzir drasticamente a capacidade das cidades de evoluir. Assim, é fundamental criar um diálogo aberto e inclusivo para evitar diretrizes genéricas e engessadas que possam sufocar a liberdade e a expressão humanas. A verdade é que para melhorar a forma como as cidades são planejadas, precisamos mudar nossa forma de pensar sobre elas. Ao invés de deixar especialistas decidirem sozinhos, precisamos ouvir a população local. Com um modelo descentralizado de gestão urbana, as decisões podem ser tomadas a partir da perspectiva das pessoas que vivem na cidade. Isso resultaria em um uso mais eficiente dos recursos disponíveis, já que a informação sobre as necessidades e demandas seria melhor aproveitada.
Como podemos observar, as ideias de Jane Jacobs e F. A. Hayek representam uma valorização da sabedoria das pessoas comuns e da importância do conhecimento local, mostrando a todos que a descentralização do planejamento é a melhor maneira de estabelecer e preservar a ordem espontânea que garante o bom funcionamento da vida urbana. Com a revisão do Plano Diretor em curso, podemos optar por um caminho diverso daquele que estamos acostumados a seguir. Se por um lado o liberalismo econômico de Friedrich Hayek nunca deu o ar de sua graça no Brasil, quem sabe agora tenhamos a chance de pautar a liberdade no planejamento urbano, honrando o grande trabalho desenvolvido por Jane Jacobs. Estamos diante de uma encruzilhada para o futuro das nossas cidades.
Leonardo Chagas, graduado em Relações Internacionais, assessor de investimentos na PRIVATTO Multi Family Office, é vice-presidente do Instituto Atlantos. Em 2019, foi reconhecido como Top Global Leader pelo Students for Liberty.