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opinião do dia 1

Quebra de paradigma

O episódio dos fichas limpas demonstrou que até o for­­ma­­lis­­mo mais arraigado e séculos de uma prática social iní­­qua podem ser derrotados por uma cidadania atuante

Poucas expressões têm sido mais maltratadas na língua portuguesa do que "quebra de paradigma". Por cá dá aquela palha, decreta-se a quebra de um paradigma: o sujeito deixou de comer carne e começou a gostar de massas e instantaneamente se conclui que quebrou o paradigma nutricional. Se um outro gostava de futebol e se encantou pelo vôlei, isso claramente indica a quebra do paradigma esportivo. Na realidade, um paradigma é um padrão, uma teoria básica (resisto a falar em verdade básica) que condiciona todas as demais: por exemplo, a crença em que o mundo era o centro do universo e que o sol girava em torno dela foi facilmente "comprovável" durante séculos, pois qualquer pessoa "sabia" que o sol nascia no oriente e se punha no ocidente. Até que surgiu uma nova teoria afirmando exatamente o contrário e tudo o que era explicável pela antiga teoria perdeu sentido.

O Brasil viveu 500 anos sob um paradigma político indiscutível, o do formalismo exacerbado, em que a aparência supera a essência, o respeito ritual à letra da lei subjuga seu espírito, o atestado de óbito é mais importante que o cadáver. Graças a isso, prosperou uma certeza, a da impunidade dos mais espertos. As leis são tão convolutas, tão cheias de meandros e de buracos e a justiça é tão lenta, que nada havia a temer. Uma parte dos crimes seria perdoada pela astúcia de um bom advogado e o manejo eficaz das artimanhas legais; outra, pelo simples passar do tempo.

A decisão histórica da aprovação do Projeto Ficha Limpa em tempo recorde no Congresso, enfrentando e vencendo resistências ostensivas e veladas de várias áreas, significa – esta sim – uma quebra de paradigma. O formalismo da rotina congressual para apreciação do projeto foi atropelada pela coragem cívica de alguns deputados e senadores, que souberam ouvir o barulho das ruas e pelo realismo de muitos outros que se renderam ao inevitável. É claro que sempre haverá um Romero Jucá da vida para tentar procrastinar, mas isso não deveria ser novidade, pois, como dizia o inesquecível filósofo e membro da nobiliarquia brasileira, o Barão de Itararé, "de onde menos se espera, daí sim é que não sairá coisa alguma".

O episódio dos fichas limpas demonstrou que até o formalismo mais arraigado, e séculos de uma prática social iníqua podem ser derrotados por uma cidadania atuante. Até os espíritos mais cínicos e mais empedernidos não são capazes de resistir a uma reação popular pacífica, mas vigorosa, apoiada por uma imprensa livre e atenta.

Agora vem uma nova luta: vencer de novo o formalismo, desta vez da Justiça, para que as regras moralizadoras passem a vigorar desde já. É preciso que os magistrados exorcizem imediatamente mais uma tentativa de anular os efeitos do projeto, baseada na troca da expressão "que tenham sido condenados" por "que forem condenados", como se houvesse uma indulgência plenária para tudo o que aconteceu no passado. A Justiça tem e não pode desperdiçar a grande oportunidade de contribuir para um salto qualitativo histórico no processo político brasileiro.

Além dessa, outra larga avenida se abre: mobilizar a sociedade para a adoção do voto distrital, uma ferramenta para dar nitidez às relações entre os eleitos e os eleitores e assegurar a legitimidade dos mandatos parlamentares. No momento em que começarem a chegar às Casas Legislativas políticos que tenham obtido o maior número de votos de um distrito eleitoral e que deverão prestar contas de seus atos e atitudes, aos poucos milhares dos eleitores que o compõem e não a um universo abstrato de 7,5 milhões de eleitores dispersos no estado todo, muita coisa mudará e muito rapidamente.

Agora falta pouco e seria uma pena que uma vitória tão maiúscula da sociedade viesse a ser frustrada porque um senador do partido de Paulo Maluf se arvorou em filólogo para beneficiar seu correligionário. A língua portuguesa não feita para coonestar malfeitorias nem permitir a impunidade de malfeitores.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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