Há algum tempo os cinemas exibiram o filme Laços, um live action da Turma da Mônica. Avós, pais e netos, sentados em suas poltronas com pipocas, estavam prontos para entrar naquele mundo infantil que todos nós conhecemos. Outro lugar mágico onde adultos voltam a ser crianças junto de seus filhos é o parque Magic Kingdom, da Disney, na Flórida. Não há quem não abra um sorriso e sinta algo especial em frente ao Castelo da Cinderela. Esta magia, mesmo que embalada por bonequinhas, fantasias de princesas e todo um arsenal comercial e de consumo, tem em sua base personagens infantis, com quem nos identificamos ou criamos afetividade.
Foram dois cartunistas – Mauricio de Sousa e Walter Elias Disney – que, com seus esforços, conseguiram expor suas criações ao público por meio das mídias disponíveis na época, com a esperança de fazer dinheiro com o sucesso dos personagens e, assim, fazer crescer seu estúdio e suas criações artísticas.
Fico imaginando como seria o périplo deles nos dias atuais. Para começar, teriam de publicar na internet, ou criar um canal de YouTube. O jovem Walt Disney, que não tinha dinheiro nenhum, mas que adorava novas tecnologias, ficaria muito animado com um serviço gratuito de divulgação como o YouTube – ainda mais ele, que sofreu para que os primeiros desenhos do Mickey Mouse fossem distribuídos nos cinemas. Disney faria várias produções para seu canal, já contando com a publicidade, e criaria o Clube do Mickey para as crianças poderem interagir e mandar seus comentários. Faria live streaming para contar dos seus novos planos e ideias, ou para mostrar ao vivo como um desenho animado é produzido.
Com certeza, Walt Disney encontraria no YouTube o público que ele buscava para exibir suas criações. Segundo um levantamento recente do AppGuardian, um aplicativo de controle parental, as crianças gastam em torno de cinco a sete horas no celular por dia. E o YouTube é o aplicativo mais acessado. A pesquisa foi feita apenas entre usuários de um aplicativo, mas basta olhar à nossa volta para vermos as crianças muito mais na frente da tela do celular ou computador do que diante da televisão.
Limitar a publicidade e diminuir as fontes de renda para canais de conteúdo infantil de qualidade é uma bomba-relógio
Para o criador de conteúdo, a plataforma é atraente: sua produção pode gerar visibilidade e retorno financeiro quase que imediatamente. A receita obtida com publicidade é dividida entre o produtor e o YouTube. Mas, recentemente, houve uma má notícia para os novos aspirantes a Disney e Mauricio de Sousa: o YouTube fez alterações nas suas regras de publicidade direcionada a conteúdos infantis.
Não será mais permitido utilizar comerciais personalizados de acordo com o perfil de quem acessa. Este tipo de publicidade, baseado no histórico do perfil de navegação dos usuários, é bem mais lucrativo que os anúncios genéricos. Não será mais permitido o uso de live streamings nos canais de conteúdo infantil. E, por fim, os comentários e notificações serão limitados ou bloqueados. O modo como o YouTube considera que um canal é direcionado ao público infantil é a própria autodeclaração do criador do conteúdo. Como isso obviamente é fácil de burlar, o YouTube utilizará também recursos de inteligência artificial para classificar automaticamente o conteúdo.
Estas alterações são resultado de uma multa de nada mais, nada menos que US$ 170 milhões que o YouTube recebeu por violação do Children’s Online Privacy Protection Act (Coppa), lei formulada no início dos anos 2000 para proibir a utilização de dados de crianças até 13 anos sem a autorização dos pais.
Em 2016, o YouTube já havia criado o app YouTube Kids, em que todas as regras do Coppa são respeitadas. O problema, no entanto, é que a maior parte das crianças acessa diretamente o YouTube – e não a modalidade Kids – em seus celulares ou smart TVs, seja porque o app do YouTube vem instalado automaticamente no sistema Android, seja porque a versão Kids é bem menos conhecida e não está disponível em todos os países. Teoricamente, as crianças só teriam como utilizar o Youtube Kids para navegar, já que a criação de contas na versão principal é limitada a maiores de 13 anos, mas a maioria das crianças usa o YouTube logada nas contas dos seus pais, ou burla facilmente a criação de contas alterando sua data de nascimento.
- YouTube, o grande radicalizador (artigo de Zeynep Tufekci, publicado em 15 de março de 2018)
- Plataformas ideológicas: como as redes sociais sucumbiram ao esquerdismo (artigo de Rodrigo Constantino, publicado em 20 de junho de 2019)
- Momo e os novos riscos da internet (artigo de Cristiane T. Geyer, publicado em 8 de abril de 2019)
O procedimento do Google para fazer o possível para respeitar o Coppa é louvável. A publicidade direcionada ao público infantil não pode usar como principal ferramenta a invasão da privacidade das crianças. Mas o resultado final dessa ação é a proliferação de conteúdo de baixa qualidade. Para que gastar dinheiro, esforço e criatividade em uma animação do Gato Galáctico ou em um episódio do Manual do Mundo, se não haverá retorno financeiro e poucas chances do crescimento do canal?
Uma possível solução é a adotada pela Netflix, que permite a criação de diferentes usuários para cada pessoa da família, e pergunta quem está acessando cada vez que é chamado. Isso permite que as crianças vejam apenas o conteúdo específico para elas, e em tese permitiria ao YouTube limitar o rastreamento de informações, exibição de publicidade, moderar comentários e live stream, tudo dentro de um mesmo app. Basta detectar que um computador, celular, tablet ou smart TV é compartilhado entre adultos e crianças – algo que o Google consegue fazer por inteligência artificial –, e ativamente solicitar a criação de perfis específicos dentro do mesmo app.
Limitar a publicidade e diminuir as fontes de renda para canais de conteúdo infantil de qualidade é uma bomba-relógio. O Brasil restringiu fortemente a publicidade infantil há alguns anos e, como resultado, os programas infantis foram se extinguindo um a um nas manhãs da tevê aberta. Em vez de desenhos do Mickey, Pato Donald, Turma da Mônica e tantos outros, hoje temos uma “fatimabernardização” generalizada, com programas voltados somente ao público adulto. Quem perdeu com isso foram a televisão, os produtores de bons conteúdos infantis e as próprias crianças. É uma pena ver isso acontecer também no YouTube.
Raquel Pires Gonçalves, publicitária e cartunista, trabalhou com animação nos estúdios Mauricio de Sousa e HGN-Disney Television.
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