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Após uma caótica e atribulada corrida eleitoral, marcada por disputas judiciais e um acirramento político jamais antes visto na história dos EUA, estava marcada para o dia 6 de janeiro a sessão no Congresso norte-americano para certificar a vitória do democrata Joe Biden no Colégio Eleitoral. No mesmo dia, centenas de milhares de eleitores de Trump se deslocaram até Washington para protestar. As cenas que o mundo presenciou daí em diante foram inéditas e chocantes. Alguns manifestantes conseguiram entrar no prédio do Congresso da maior democracia do mundo. Quatro pessoas morreram, uma delas uma mulher baleada dentro do Capitólio por agentes de segurança.
Ao analisar todos os acontecimentos em Washington tiram-se várias conclusões, porém algo específico salta aos olhos: o gritante duplo padrão de boa parte da imprensa e de muitas pessoas ao descreverem esta manifestação, em comparação com as centenas de manifestações do Antifa e Black Lives Matter ao longo do ano.
É bom já deixar um ponto bastante claro: os baderneiros que invadiram o Congresso americano devem ser identificados e presos. Não há como relativizar qualquer tipo de violência, depredação de patrimônio público ou invasão. O Partido Republicano sempre foi o partido da “lei e ordem”, e deve continuar defendendo tais valores. O que embrulha o estômago é o duplo padrão das pessoas que classificam os baderneiros do dia 6 como “terroristas”, mas durante todo o ano passado chamaram extremistas violentos de esquerda de “manifestantes pacíficos”.
O âncora da CNN americana Chris Cuomo, irmão do governador democrata de Nova York, disse no ar, em 2 de junho do ano passado, que “protestos não deveriam ser educados ou pacíficos”. Ele estava obviamente se referindo aos protestos do Black Lives Matter e do grupo Antifa, que desde o início do ano passado causam terror e violência por todos os EUA. Para o âncora, esses grupos têm licença para serem violentos.
Em outubro, um apoiador de Trump foi assassinado no meio da rua em Portland. Grupos extremistas tentaram invadir e atear fogo em um prédio federal da cidade. Milhares de lojas e estabelecimentos comerciais foram depredados e incendiados em diversos estados. Em uma imagem que viralizou e que escancara este duplo padrão, um repórter da CNN descreve os protestos como “majoritariamente pacíficos”, enquanto chamas enormes dominam o cenário ao seu redor.
Por que, então, existe esse duplo padrão tão evidente? O que está por trás do posicionamento das pessoas que estão defendendo grupos extremistas violentos desde o começo do ano passado?
A resposta não é tão simples. Eu a obtive após várias conversas com pessoas que adotaram essa exata postura, de criticar a violência de apoiadores de Trump, mas ignorar completamente a violência dos grupos de esquerda. Depois de algum tempo de conversa, os defensores do Black Lives Matter (que ao menos são honestos) admitem que, para eles, a violência desses grupos é justificável porque a “causa” permite. Ou seja, se for para “combater o racismo”, a violência é permitida, o que não seria o caso dos manifestantes pró-Trump.
Ora, essa visão é no mínimo interessante. Essas pessoas utilizam a sua própria régua moral para definir quem pode ou não ser violento. Para elas, o problema não é a violência em si, mas quem está sendo violento e qual a motivação desta pessoa. Se a motivação passar na régua moral estabelecida por eles próprios, a violência está liberada. Por essa mesma lógica, poder-se-ia justificar, por exemplo, atentados de extremistas islâmicos. Pela régua moral dos terroristas, eles estão cobertos de razão. A “causa” deles poderia ser tão justificável quanto a causa do “combate ao racismo” nos EUA. Deveríamos, portanto, tentar compreender a motivação deles e justificar um atentado que tire a vida de algumas pessoas? A partir do momento em que o limite não é mais o ato violento, mas a motivação de quem está cometendo tal ato, entramos em um terreno muito espinhoso e injustificável do ponto de vista moral.
Cada um tem o direito de defender as ideias que bem entender. Devemos defender ferozmente a liberdade de cada pessoa se expressar. No entanto, o limite desta liberdade é a preservação da propriedade pública e privada, que inclui a integridade física de outras pessoas. Violência é inadmissível em qualquer circunstância, e deve ser a linha que separa pessoas sensatas de mentes revolucionárias. Quem hoje defende a violência de determinados grupos porque concorda com a “causa” amanhã terá de defender a violência de qualquer um que tenha uma “causa” pela qual lutar. Que lutemos sempre no campo das ideias, e não tentemos justificar violência por qualquer razão que seja.
Gabriel Kanner é empresário, ativista social e presidente do Instituto Brasil 200.