A extradição de Cesare Battisti, que voltou a ocupar as manchetes depois das eleições de 2018, traz ao debate tema que extrapola em muito o caso em si. Não se trata de analisar o mérito das imputações e condenações feitas pela Justiça italiana quanto às atividades de Battisti na década de 70 do século passado. A pergunta que reclama atenção é: Pode o ato administrativo praticado pelo presidente da República que denegou a extradição ser, agora, anulado ou revogado?
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar qualquer pedido de extradição feito ao Brasil, o faz apenas em termos de autorização. Se o pedido é acolhido pelo STF, ao presidente da República assiste a prerrogativa exclusiva de conceder ou não a extradição. Se o STF julgar improcedente o pedido, sua decisão vincula o presidente da República.
O ato denegatório ou de concessão da extradição é o típico ato de expressão de soberania nacional
Em 2009, o STF deferiu o pedido de extradição de Battisti formulado pela Itália. No fim de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base em dispositivos de tratado que o Brasil mantém com a Itália, publicou ato administrativo decidindo não extraditar o italiano. A Itália, então, propôs Reclamação perante o STF e outra petição visando anular a decisão de Lula. Em junho de 2011, o Supremo proferiu acórdão em que consagrou o entendimento de que a decisão presidencial que nega a extradição é um ato de soberania nacional que não pode ser reanalisado pelo STF. Operou-se, pois, coisa julgada material em relação à decisão do presidente da República.
Desde então, nenhuma irresignação do Estado italiano restou pendente de julgamento. Passaram-se anos. Do ato administrativo do presidente da República não foi interposto nenhum outro recurso administrativo ou medida judicial.
O ato denegatório ou de concessão da extradição é o típico ato de expressão de soberania nacional, e não do alvedrio do cidadão que ocupa o cargo de presidente da República. Qualquer tentativa de irresignação contra a decisão de 2010 já foi atingida pela preclusão. Ou são observadas as normas positivadas ou o próprio Estado Democrático de Direito é colocado sob suspeição. Ronda, então, o perigo da arbitrariedade e do autoritarismo.
Os atos jurídicos perfeitos (citados no inciso XXXVI do artigo 5.º da Constituição) de um Estado democrático constitucional devem gerar segurança jurídica e não podem sujeitar-se a variações e inconstâncias decorrentes de trocas de governo. Haja concordância ou não, o ato do Poder Executivo praticado em 2010 e confirmado pelo STF em 2011 está esgotado e cabalmente consumado. O artigo 54 da Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo em âmbito federal, estabelece que o direito de a própria administração anular atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários decai em cinco anos.
A estabilidade de decisões soberanas é fundamental à própria concepção do Estado Democrático de Direito. Não fosse assim, o cidadão nacional ou estrangeiro ficaria sujeito ao arbítrio e aos caprichos do governo de plantão. Há anos o Poder Executivo negou a extradição de Cesare Battisti. Tal decisão passou a integrar o direito subjetivo desse estrangeiro residente no Brasil de não ser extraditado ao seu país. Não há nem sequer como falar em reconsideração do ato fora do prazo do recurso administrativo.
Não se trata exclusivamente do direito adquirido (protegido pelo mesmo inciso XXXVI do artigo 5.º) de um italiano. O que está em jogo é muito mais que isso: será mantido o Estado de Direito ou o poder do Leviatã não encontrará mais barreiras na lei? O caso Battisti e as circunstâncias inusitadas e repentinas de seu tratamento a partir de dezembro de 2018 causam estranheza quanto à iniciativa e protagonistas, e também suscitam preocupação não tanto com o extraditando, agora foragido, mas, sim, com o Brasil e os seus rumos.