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"O pensamento humano é primeiro teológico, em seguida metafísico e por fim positivo" (A. Comte)

A recente campanha deflagrada na Europa pela Associação Humanista Britânica, tendo à frente o biólogo Richard Dawkins, mais que uma provocação, é um convite simpático para as pessoas refletirem a respeito de suas vidas e de seus valores, individuais e coletivos. Essa campanha, que ocorrerá ainda na Espanha, na Itália e talvez na França (mas também no Brasil), dá-se em um momento em que se vê um retorno da teologia – que dura já quase 20 anos – e em que os humanistas, ateus e agnósticos procuram não apenas defender a laicidade e o secularismo, mas também a validade política e filosófica de suas posições e perspectivas.

Há duas ou três questões envolvidas na "polêmica" dos anúncios veiculados nos ônibus: 1) as escolhas individuais sobre crenças e valores; 2) a pseudodiscussão sobre a imoralidade de quem não crê em deus; 3) a importância pública (política) da religião. Apesar de a campanha britânica tratar apenas da primeira questão, as polêmicas que surgiram ao seu redor envolvem as três – sendo, no final das contas, esse o objetivo de Dawkins, dos ateus, dos agnósticos e dos humanistas de modo geral – mas também dos religiosos. Vamos nos ater a duas outras questões, em que a análise sociológica e filosófica é inseparável da afirmação moral.

A primeira refere-se ao avanço da teologia na vida pública e privada, no mundo inteiro e no Ocidente em particular. As marchas concomitantes da laicização e da secularização no Ocidente (mesmo no mundo) foram fatores de progresso social, moral e intelectual, com a atenção dos seres humanos voltando-se para o próprio ser humano e para sua realidade cósmica, social e individual. Isso inclui não apenas (por exemplo) o desenvolvimento da Medicina, das telecomunicações, da Sociologia, da Psicologia, do Welfare State e das preocupações ambientais, mas, acima de tudo, permitiu o desenvolvimento de um ambiente social e político favorável à livre expressão das ideias, mesmo aquelas mais contrárias aos "poderes dominantes". Em outras palavras, foi o afastamento da religião que permitiu ao ser humano conhecer-se melhor e à sua realidade, além de ter-lhe criado as condições intelectuais e políticas necessárias para manter-se livre e combater crimes e excessos.

Assim, sem rodeios, o retorno da teologia é um retrocesso nessa marcha, com a afirmação de obscurantismos e "vontades" absolutas e arbitrárias como justificativa tanto para regimes sociopolíticos dominadores quanto para decisões individuais e coletivas daninhas para o ser humano e para o planeta Terra. Além de problemas facilmente perceptíveis como os excessos muçulmanos do Talibã ou cristãos de G. W. Bush, há derivações mais sutis: por exemplo, a afirmação do presidente francês Nicolas Sarkozy de que em uma república a crença na transcendência é um pré-requisito: essa é uma forma velada de dizer que um bom cidadão deve ser um fiel, deve acreditar em deus (mas qual deus? Aquele que o Estado defende?).

A segunda questão refere-se à necessidade de moral humana. Diversos pensadores de origem religiosa afirmam que, sem a crença em deus (mas qual deus?), o ser humano é imoral e criminoso. Ora, tal afirmação é um duplo erro: crer em deus não garante a moralidade nem descrer significa imoralidade. Os exemplos novamente são fáceis e variados: a quantidade de criminosos tementes a deus é enorme (na verdade, quase a totalidade deles), assim como a quantidade de humanistas e beneméritos ateus, agnósticos é também enorme – e, em particular, em uma porcentagem muito maior daqueles que creem em deus.

Essas são questões polêmicas, que suscitam fortes paixões. Para tratar delas, é necessário cuidado intelectual, respeito pela posição alheia e compromisso com as liberdades públicas. Respeitadas essas condições, todos temos a ganhar, agora que o debate está aberto.

Gustavo Biscaia de Lacerda (gblacerda@ufpr.com) é sociólogo e cientista político da UFPR.

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