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Raça como ofício

A professora disse que não. “Acho que devemos perguntar a outro estudante”, decidiu Rachel Dolezal, rejeitando a participação de uma jovem hispânica de pele clara no exercício pedagógico destinado a expor a classe a “experiências raciais e culturais”. Por que não? “Rachel argumentou que eu não parecia hispânica e que, por isso, duvidava da minha capacidade de partilhar experiências de discriminação racial”. O episódio ocorreu anos atrás, na Eastern Washington University, e não viria à luz se a identidade racial da própria professora não tivesse sido impugnada. Dolezal não é negra, mas branca, esclareceram seus pais, provocando um pequeno escândalo que se concluiu pela renúncia da ativista afroamericana a seu cargo na NAACP, a venerável organização negra fundada em 1909. A fraude diz algo sobre a ativista – mas muito mais sobre as engrenagens perversas das políticas de raça.

“Eu não simulo um rosto negro como performance”, defende-se Dolezal. “Identifico-me como negra. Isso se dá num nível muito conectado e real, ligado a uma vivência, não é uma mera representação visual.” Ela nasceu em 1977, numa família de origens alemãs, tchecas e suecas. Seus pais, missionários cristãos, adotaram três crianças afroamericanas e uma haitiana durante sua adolescência. Nas fotos da época, Rachel aparece como uma garota branca e sardenta, de olhos verdes e cabelo claro.

Se a aparência é igual à essência, como ela sustentaria diante da estudante hispânica, aquela Rachel jamais poderia oferecer testemunhos sobre discriminação. Mas, obviamente, o corpo humano tem alguma maleabilidade. “Certamente não me escondo do sol”, admite a ativista, reconhecendo que “estilistas de cabelos negros estilizaram meu cabelo de muitos modos diferentes”. Nas fotos atuais, Dolezal é suficientemente negra para discorrer sobre suas dolorosas experiências pessoais de discriminação – e, ainda, para julgar a veracidade da identidade racial de outros.

Nos EUA, as leis de discriminação racial separaram a essência da aparência. Sob a regra da gota de sangue única, consolidada na Lei da Integridade Racial do Estado da Virgínia, em 1924, a existência de um único ancestral não branco excluía o indivíduo da categoria dos brancos. Nessa regra, que aboliu oficialmente a miscigenação, encontra-se a base do sistema de classificação racial do país. Como efeito dela, surgiram negros de pele relativamente clara. Um deles, Walter Francis White, olhos azuis e cabelos loiros, chefe-executivo da NAACP entre 1929 e 1955, passou-se por branco para investigar os linchamentos da Ku Klux Klan e reuniu as evidências que possibilitariam o banimento da organização. Muitos milhares de outros, para escapar à discriminação, fizeram o passing definitivo, isto é, queimaram seus documentos, apagaram os rastros de suas ancestralidades e desapareceram no universo dos brancos. Numa época diferente, Dolezal tentou o salto inverso, fazendo o passing na direção da militância afroamericana.

Nossas leis raciais têm a mesma meta que a Lei da Integridade Racial da Virgínia: traçar uma fronteira nítida, indelével, entre “brancos” e “negros”

O caminho começou a ser trilhado em 2000, quando Dolezal ingressou na Howard University, uma instituição voltada historicamente para os negros, com um pedido de admissão que sugeria a identidade afroamericana. Dois anos depois, alegando que sua família branca poderia arcar com as anuidades, a universidade cortou sua bolsa de estudos. Ela ainda não tinha “um rosto negro” – e processou a Howard por discriminação “com a finalidade de favorecer estudantes afroamericanos”. Na sequência, converteu-se em ativista afroamericana, galgou a hierarquia da seção local da NAACP e passou a lecionar em diversos cursos acadêmicos focados em temas raciais. “Minha vida tem sido uma sobrevivência, e as decisões que tomei ao longo do percurso, incluindo minha identificação racial, foram adotadas para sobreviver.”

Verdade e mentira não são preto no branco, quando se trata de raça. Uma amarga disputa judicial distanciou Dolezal de seus pais: em 2010, ela obteve a guarda de um dos irmãos adotivos, que cria como se fosse seu filho num “ambiente de celebração da cultura afroamericana”. Nos formulários administrativos, ela declara ancestralidades negra, indígena e branca. Segundo seus pais, haveria algum antepassado indígena na família, mas nenhum negro. A ativista afirma que viveu numa tenda indígena, na infância. Algo assim ocorreu de fato, brevemente – mas com seus pais, três anos antes de ela nascer. De certo modo, a fraude continuada sedimentou-se como experiência e identidade.

Aparência é essência? No Brasil, o triunfo do racialismo depende da abolição da consciência da mistura. Nossas leis raciais têm a mesma meta que a Lei da Integridade Racial da Virgínia: traçar uma fronteira nítida, indelével, entre “brancos” e “negros”. Contudo, na falta da tradição de discriminação estatal americana, o expediente utilizado baseia-se na aparência. Para efeitos de concursos de ingresso ao ensino superior e ao funcionalismo público, serão negros os que assim se declararem – e forem aceitos como tais por improvisados “tribunais raciais”. Nesse sistema, não há fraude, mas uma operação social de reinvenção identitária: todos os que puderem exibir convincentemente “um rosto negro” serão rotulados como negros.

Se existem transgêneros, o que impede o advento de indivíduos transraciais? Dolezal, tudo indica, articulou uma estratégia de “sobrevivência” em torno de sua nova identidade racial. O “rosto negro” abriu-lhe veredas para conquistar prestígio político e ascender profissionalmente, numa sociedade que continua a distinguir as pessoas “pela cor de sua pele”, não pelo “conteúdo de seu caráter”. Por aqui, a expansão das leis raciais não provoca mudança alguma nos nossos ossificados padrões de exclusão social — mas oferece múltiplas oportunidades individuais, na vida acadêmica ou na carreira profissional. A raça torna-se ofício.

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