Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, em Brasília.| Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
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No último dia 15 de novembro, esta Gazeta do Povo publicou editorial intitulado “A racionalização da máquina estatal”, em defesa da “burocratização” (em sentido weberiano) efetiva do Estado – ou seja, a racionalização de seus processos, de modo a torná-lo mais eficiente, cortando desperdícios e outros gastos desnecessários – enfim, a “desburocratização” (em sentido popular), a eliminação de disfuncionalidades e ineficiências que emperram a realização dos fins prioritários do Estado e o tornam um peso excessivo para o contribuinte.

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Aqui eu aponto que a defesa da eficiência na máquina pública, embora seja uma constante em qualquer país e em qualquer regime no mundo – e em todas as épocas –, no Brasil é praticamente uma utopia. O nosso sistema político foi desenhado para perpetuar as ineficiências que já existiam desde tempos monárquicos (em que vigia – e ainda vige – aquilo que Weber e Faoro chamaram de dominação patrimonialista do Estado – ou seja, a máquina pública como uma mera extensão do patrimônio particular de seus incumbentes).

É óbvio que o parlamentarismo não é uma panaceia destinada a resolver todos os problemas. Contudo, grande parte dos cientistas políticos reconhece que o regime presidencialista está relacionado ao agravamento das disfunções que naturalmente decorrem da política

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O movimento independentista nas Américas (e republicano no Brasil; nós fomos o único país a se tornar independente e manter uma monarquia) como um todo foi fortemente influenciado pela independência norte-americana. Esta, por sua vez, baseou-se profundamente na ideia de Montesquieu – a repartição e a independência de Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Esse modelo parecia fazer sentido (e fez) para o caso de um Estado que se formava a partir da união de treze colônias independentes – que abriam mão de parte de sua soberania, mas preservavam a maior parte de suas competências.

Nesse sentido, as Constituições das ex-colônias espanholas (e o Brasil) copiaram em parte o modelo norte-americano de tripartição de poderes. O Executivo manteve-se “independente” do Legislativo, tal como era no regime anterior (na monarquia absolutista, o rei também não está submetido ao controle do Parlamento; e nela, ao contrário das monarquias parlamentaristas constitucionais à moda inglesa, o rei reina e governa).

Mas essas cópias parciais deixaram de trazer outro elemento essencial para o sucesso do presidencialismo nos vizinhos do norte: o federalismo. As Constituições latinas nasceram unitaristas, concentrando poderes num ente político uno – uma continuidade do regime anterior, monárquico; só que ao invés de concentrar poderes num único indivíduo, passou-se a concentrá-los numa única instituição, uma única entidade política.

Mesmo aquelas que, posteriormente, declarariam a federação (nosso caso), o fariam apenas nominalmente, ficticiamente. O poder político já nasceu demasiadamente concentrado nas elites vinculadas a um único estamento burocrático, nacional. Se essas elites abriram mão de parte do poder para a formação de novos entes federados, descentralizados, foi essencialmente para se livrar de atribuições administrativas – atividades que, embora sejam importantes para os governados, não impactariam de forma significativa sua capacidade de tomar decisões políticas e de legislar. Em outras palavras, as Constituições “federais” como as nossas trocaram os nomes das antigas províncias para “Estados” (às vezes grafados com o “e” minúsculo); deram ao povo alguma autonomia para eleger os administradores (mais que governantes) dessas “ex”-províncias; e criaram novas assembleias inúteis, com quase nenhuma competência legislativa relevante. Descentralizaram parte de sua competência, mais relacionada ao Poder Executivo (administrativo), não se distinguindo, na essência, de um Estado unitário que delega atribuições para os governadores de suas províncias e territórios.

Nos Estados Unidos, porém, seu processo de formação determinou a adoção de um federalismo real. As Treze Colônias, após declararem sua independência, se uniram inicialmente numa confederação, um pacto de defesa mútua contra a reação do Império britânico. Eram efetivamente, desde o princípio, Estados diferentes, com governos diferentes, com elites burocráticas e máquinas administrativas distintas, que se uniram apenas com o propósito de fortalecer sua defesa externa. Com o tempo, a confederação mostrou-se um pacto frágil e instável demais – vemos isso atualmente com a saída do Reino Unido da União Europeia, que é algo hoje similar a uma confederação. A solução foi o fortalecimento do compromisso das ex-colônias, tornando a confederação uma federação, que proibia a secessão, a separação – um “casamento” cujo divórcio é proibido. Se houve “delegação” de poder nesse processo, ela ocorreu de “baixo para cima”, ou de forma “centrípeta”, de fora para dentro. Assim, ao invés de concentrar todas as competências legislativas e decisórias na União (que, ao contrário de nós, representa uma “união” de fato), foram concedidas apenas aquelas consideradas estratégicas, como a defesa externa, a emissão de moeda, entre outras.

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O Poder Executivo nacional, nos Estados Unidos, embora tenha nascido com a independência idealizada por Montesquieu (ou seja, sem vinculação direta com o parlamento), foi criado sem força suficiente para sobrepujar as elites regionais, dos Estados (esses, sim, com “E” maiúsculo) federados. Os EUA mantiveram a real autonomia das máquinas administrativas estaduais e de seus respectivos parlamentos. Por isso, não sofreram as mesmas disfunções de quem lhes copiou o sistema presidencialista sem se preocupar com a real repartição de competências para as esferas regionais, federadas.

O editorial que mencionei no início cita a criação da Secretaria de Gestão Pública (SGP) por Dilma Rousseff. Trata-se apenas de mais uma iniciativa infrutífera entre inúmeras outras, iniciadas teoricamente por Vargas, com o DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público (1938), passando pelo PDRAE – Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995) e chegando aos dias atuais com o MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos).

Embora por vezes tenham significado, sim, uma mudança na tendência de expansão (com seus desperdícios e disfuncionalidades) da máquina pública, esse recuo quase sempre durou pouco. Mesmo os dois políticos mais habilidosos das últimas décadas, FHC e Lula (os únicos de nossa história que completaram dois mandatos – desconsiderando o primeiro “mandato” de Getúlio, que não foi eleito) mostraram que, no presidencialismo de coalizão, é possível implementar reformas indutoras de eficiência no início do governo, quando se está no auge de sua popularidade (os exemplos mais notáveis são as privatizações e o Plano Real, no caso do primeiro; e a reforma da previdência de 2003, no caso do segundo). Contudo, com a natural queda de popularidade, aumentam-se os custos para a manutenção da governabilidade – e isso sempre se reflete em aumento de gastos da máquina pública, a fim de acomodar mais e mais interesses do “Centrão” – cujo apoio é necessário para se manter no poder.

Essa dinâmica se repete em todas as repúblicas presidencialistas. Nos EUA, essa tendência é reduzida pela resistência das elites dos Estados federados, efetivamente representados no Senado. Lá, as fortes tendências desagregadoras, resultantes da descentralização efetiva de competências, impedem que a máquina administrativa da União se expanda cada vez mais (por mais que os EUA tenham os maiores gastos com efetivo militar do mundo, as maiores dívidas e os maiores déficits públicos do mundo – mas isso será tema de outro artigo). Ao mesmo tempo, a concorrência interestadual leva à autocontenção dos Estados tanto na tributação quanto no gasto (por aqui, chamamos isso pejorativamente de “guerra fiscal”, embora seja um dos fatores indutores da eficiência e impulsionadores do crescimento econômico norte-americano).

Embora os brasileiros tendam a relacionar o parlamentarismo com o regime monárquico – pré-1889 –, o que vigorou aqui desde 1847 foi o que os historiadores chamam de “parlamentarismo às avessas”: a lógica inversa ao modelo inglês (e que vige em qualquer república parlamentarista atual), em que o povo elege o parlamento e este elege o gabinete, o conselho de ministros que exercerá o governo. Em nosso Segundo Reinado, era o rei quem escolhia os integrantes do governo (indiretamente, por meio do Conselho de Estado); com isso, o gabinete frequentemente não representava a maioria da Câmara dos Deputados – e ora aquele era dissolvido, ora esta última. O sistema era dito parlamentarista, mas quem governava de fato era o Poder Moderador, exercido pelo Imperador; o Conselho de Ministros não encontrava sustentação e legitimação na Câmara - e o resultado disso era uma “guerra” entre Executivo e Legislativo (que se estendeu até os dias atuais).

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Durante os 42 anos em que esteve vigente, esse sistema fez com que o Conselho de Ministros fosse dissolvido 32 (trinta e duas) vezes. Isso significa que cada "governo" teve, em média, duração inferior a um ano e meio. Essa instabilidade também repercutia na Câmara dos Deputados – das 21 legislaturas (de 4 anos cada), em 11 (mais da metade) ocorreu a dissolução do parlamento e a realização de novas eleições, que eram notoriamente marcadas por fraudes e a tentativa do partido que ocupava o Conselho de se impor.

Por isso era o inverso do parlamentarismo. Enquanto neste tradicionalmente se dá a formação do governo por um parlamento democraticamente eleito, o que ocorria em nosso Segundo Reinado era que frequentemente o “governo” (escolhido pela Corte Imperial, encimada pelo Conselho de Estado) era quem dava as cartas nas eleições. Essa lógica invertida assegurava que as tensões anulassem, na prática, a atuação tanto do gabinete de ministros quanto do Poder Legislativo – o que favorecia o Poder Moderador, que cada vez mais reinava e governava. O parlamentarismo no Brasil foi um mero arremedo, uma fachada para mascarar a manutenção da monarquia absolutista – dar-lhe ares de monarquia constitucional (quando, na realidade, o que a própria Constituição de 1824 dizia era que “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação”).

Como dito, a instabilidade do Império se manteve na República – justamente porque a lógica invertida da relação entre Executivo e Legislativo se manteve. No presidencialismo, ao invés de o governo ser formado a partir da coalizão entre os partidos com maior representatividade no parlamento, o que temos é um governo eleito de forma independente tentando formar uma maioria para se manter. Se foram 11 os “golpes” que resultaram na dissolução da Câmara dos Deputados durante o Segundo Reinado, após a República tivemos mais 6 (seis) ocasiões em que ela foi totalmente dissolvida – sem contar as inúmeras cassações de mandato com a Câmara em pleno funcionamento (durante as ditaduras oficialmente reconhecidas, ou mesmo fora delas).

Ao mesmo tempo, a “guerra” entre Executivo e Legislativo também deixa baixas no primeiro. Se antes a falta de governabilidade resultava no frequente afastamento do “governo” pelo Conselho de Estado (32 vezes em quatro décadas, como dito), hoje o que temos é a figura do impeachment, com Dilma e Collor; as “forças ocultas” que impediram Jânio Quadros de continuar; e a sempre presente ameaça de golpe armado, efetivado com Vargas, duas vezes, e com a junta militar liderada por Costa e Silva em 1964.

A tendência para a instabilidade gera não só as rupturas que prejudicam tanto o ideal de representação democrática quanto o crescimento econômico e o desenvolvimento do país (principalmente devido à falta de segurança jurídica). Ela está também na base dos nossos índices monumentais de corrupção, desperdício e ineficiência. Enquanto protestamos por mais eficiência, o sistema está desenhado para ser hiperdependente dos conchavos e das negociações políticas. A máquina pública como um todo é um mero instrumento de acomodação de interesses para a obtenção de apoio político.

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Não que isso não ocorra no sistema parlamentarista de fato (não o embuste que adotamos até 1889, mas o que é efetivamente adotado em países desenvolvidos). Mas como eu frisei aqui, no presidencialismo multipartidário (presidencialismo de coalizão) o problema é maior porque o custo para a governabilidade é maior. Quanto mais o regime tende à instabilidade, mais o governante precisa dispor de cargos e rendas públicas para obter apoio e se manter no poder.

É óbvio que o parlamentarismo não é uma panaceia destinada a resolver todos os problemas do Estado. Contudo, grande parte dos cientistas políticos reconhece que o regime presidencialista está relacionado ao agravamento das disfunções que naturalmente decorrem da política. O jogo político é, por essência, um jogo sujo, em que interesses mesquinhos prevalecem sobre as reais necessidades públicas; contudo, as regras do jogo, que definem o regime político do país, podem conduzir os "jogadores" a atuar de forma ainda mais ou menos nociva para a sociedade. Um sistema de incentivos perverso tende a fazer com a que política seja ainda mais suja do que ela poderia ser num outro desenho institucional – um que controle efetivamente o exercício do poder, que garanta a representação democrática e que não gere disfunções além daquelas que decorrem naturalmente do exercício do mandato (a relação representante-representado, ou agente-principal).

Por muito pouco não adotamos o sistema parlamentarista em 1988. A Assembleia Constituinte foi uma oportunidade de ouro para o país sair da armadilha presidencialista. Contudo, o anteprojeto de Constituição (cuja elaboração partia da contribuição de muitos juristas renomados), que já estava aprovado nas comissões e publicado no Diário Oficial, foi notavelmente desconstruído em plenário, por representantes do "Centrão" – mais preocupados com suas reeleições como deputados que com a perenidade e a sustentabilidade do texto que estavam a redigir. As discussões sobre os artigos que tratavam sobre o sistema político receberam considerável pressão e influência por parte do governo Sarney; e o parlamentarismo deixou de ser uma realidade prevista em diversos dispositivos para se tornar uma mera esperança no art. 2º do ADCT – até ser enterrado de vez em 1993, após ser amplamente difamado pela mídia.

Aerton Zambelli L. O. Costa, draduado em Direito, especialista em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos pela UFLA e mestrando em Direito Internacional pela MUST University, é auditor federal de Finanças e Controle na Controladoria-Geral da União.

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