A diminuição da mortalidade por câncer de mama, inicialmente registrada nos Estados Unidos e, em seguida, na Suécia, Inglaterra e nos outros países europeus, é fruto de décadas de investimentos voltados para o diagnóstico precoce e para o acesso da maioria da população aos avanços no tratamento. O diagnóstico precoce, além de beneficiar as mulheres, reduz os custos finais do tratamento. Além disto, mantém economicamente ativa uma faixa importante da população de pacientes com câncer de mama.
No Brasil, por outro lado, segundo o Ministério da Saúde a cada ano surgem mais de 50 mil novos casos de câncer de mama e morre 1 mulher a cada 36 minutos como consequência desta doença. Esses dados são alarmantes, pois, ao contrário do que vem acontecendo nos países desenvolvidos, onde a mortalidade devido ao câncer de mama tem diminuído globalmente há alguns anos, aqui espera-se ainda um aumento tanto na incidência quanto na mortalidade para os próximos anos.
Os objetivos das políticas de saúde pública em câncer são bem conhecidos em todo o mundo. Eles devem ser concentrados predominantemente na sua prevenção e diagnóstico precoce. O European Code Against Cancer, instituído em 2003 como guia para a União Europeia, contém uma série de medidas preventivas de custo e complexidade baixos. Entre essas, estão o rastreamento mamográfico e o exame clínico de rotina, que podem reduzir de 25 a 30% a mortalidade por câncer de mama nas mulheres acima de 50 anos. Possibilitam diagnosticar tumores menores, onde o tratamento necessário é menos custoso e agressivo e os resultados são mais efetivos.
Os dois estudos publicados nesta semana nos Estados Unidos levam em consideração predominantemente o aspecto relacionado à diminuição da mortalidade. O mais importante deles, e que chamou a atenção da comunidade científica internacional, é o do US Preventive Task Force, que não recomenda o uso universal do rastreamento mamográfico entre 40 e 49 anos. Considera que nesta faixa de idade os benefícios em termos de melhora da sobrevida são pequenos. Uma morte poderia ser evitada a cada 1.900 mulheres rastreadas em dez anos, o que é significativamente menor do que 1 morte evitada para cada 1.300 mulheres rastreadas entre 50 e 59 anos, ou 1 a cada 400 mulheres rastreadas entre 60 e 69 anos. Também considera um número excessivo de exames falso-positivo, ou seja, que encontram lesões suspeitas para malignidade, que na realidade são benignas. Esses exames aumentariam os custos com biópsias desnecessárias e poderiam gerar mais ansiedade e angústia nas pacientes.
Considerando apenas esses fatos, devemos rever as recomendações em nossa realidade?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que no Brasil não temos rastreamento adequado em nenhuma faixa etária. Em segundo lugar, não se trata de uma medida oficial do governo americano. As Task Forces são grupos de especialistas que elaboraram diretrizes que podem ou não serem seguidas. Além disso, é preciso ressaltar que não se está colocando em questão a importância da mamografia no rastreamento do câncer de mama, apenas questionando-se a idade mais adequada para que se obtenham os melhores resultados em termos de saúde pública. Em terceiro lugar, esses dados referem-se apenas às pacientes consideradas de baixo risco, ou seja, sem história familiar de câncer. As pacientes de alto risco necessitam de orientações individualizadas, rastreamento mais precoce e tratamento quimiopreventivo.
Mas, talvez o aspecto mais importante e que não foi avaliado nesses estudos esteja relacionado ao benefício do tratamento conservador nas pacientes com tumores detectados nos exames de rastreamento. Felizmente, o tratamento cirúrgico do câncer de mama passou por uma grande mudança de conceitos. Progrediu de uma fase na qual os cirurgiões se preocupavam em realizar procedimentos radicais, para a atual, em que o mais importante é oferecer o máximo da efetividade com o mínimo de morbidade. Significa que precisamos nos preocupar não apenas com a cura das pacientes, mas também com a sua qualidade de vida. Dessa forma surgiu a cirurgia conservadora da mama, a biópsia do linfonodo sentinela e a radioterapia localizada. A maior parte desses benefícios, contudo, é para pacientes com tumores precoces, diagnosticados em exames de rastreamento antes de se tornarem palpáveis.
O rastreamento mamográfico, portanto, tem duas perspectivas. A da redução da mortalidade exaltada pela US Preventive Task Force é apenas uma delas, onde inquestionavelmente os melhores resultados são para as pacientes acima dos 50 anos de idade. O benefício com tratamentos mais conservadores e menos mutilantes, por outro lado, é o segundo aspecto e talvez o mais importante deles. Este, entretanto, ainda não foi avaliado corretamente e é necessário cautela na interpretação dos dados existentes. Caso contrário, corremos o risco de aumentarmos nossas já elevadas taxas de mastectomias e de esvaziamentos axilares, e, portanto, de comprometermos ainda mais a qualidade de vida de nossas pacientes.
Não existem dúvidas de que o universo tecnológico melhorou muito as possibilidades diagnósticas e terapêuticas no câncer de mama. Mas é preciso não esquecer que a experiência individual de quem se confronta com este mal (ou com a possibilidade dele) não é apenas imanente, nem objeto somente do cálculo científico, mas de uma complexa combinação de dor e esperança, vivenciados pelos pacientes. E o médico deve ter a sensibilidade de reconhecer seu papel mais importante: cuidar e somar qualidade aos anos de vida das mulheres com câncer de mama. Nesse sentido, o rastreamento continua fundamental.
Cícero Urban, médico oncologista e mastologista, professor titular das isciplinas de Metodologia Científica e Bioética na Universidade Positivo