Hodiernamente, nenhum tema é tão candente quanto o retorno às aulas presenciais, que envolverá 48 milhões de estudantes da educação básica e mais 8,4 milhões do ensino superior. Como tudo o que se refere à Covid-19, há polarizações exacerbadas, estatísticas para todos os gostos e as fake news que se espalham como ervas daninhas. E, quando as versões contrariam a ciência, pior para a ciência.
O retorno de muitas áreas e atividades à quase normalidade está num ritmo frenético demais em todo o país – muitas vezes à revelia das leis e das autoridades –, e a expressão “fique em casa” passou a ser substituída por “ninguém aguenta mais”. E aí mora o problema: esse esgarçamento desmesurado – tipo fadiga de quarentena – está levando parte da população à irresponsabilidade: desde os rolês e churrascos aos bares, raves e praias, sem os cuidados mínimos de distanciamento e uso de máscaras. Viralizou um meme de uma foto em uma de nossas praias coalhada de guarda-sóis, encimada por uma pergunta: e aqui não há alunos, nem professores?
Tais aglomerações – fontes incontestes de contágio – devem ser repudiadas para a tão almejada redução das curvas de contágio e de mortes, bem como para o retorno pleno dos serviços, comércio e indústria (e assim alavancar o emprego, a economia e até o orçamento público) e, tão necessário quanto, para a reabertura das escolas ao ensino presencial. Todo o problema que se queira resolver deve ser enfrentado, e estamos apenas tangenciando, postergando, feito um tear de Penépole, em relação ao tema do reinício das aulas presenciais. É uma ilusão esperar pelas condições ideais, uma vez que esse vírus capiroto já sinalizou que não vai dar esta canja tão cedo.
Sempre oportunas são as palavras de Roberto Campos: “o debate honesto pressupõe conhecimento da causa”. Há excessivas tergiversações nas redes sociais e, em parte da mídia, uma imbricação de temas e argumentos fúteis. Até mesmo decisões judiciais extremadas, como no Rio de Janeiro, onde se concedeu liminar a um sindicato de professores para proibir o retorno às aulas até que todos os alunos e docentes fossem vacinados. O bom senso prevaleceu com a suspensão desta liminar, depois de vários dias de embates nos tribunais. Os professores devem fazer parte da solução e não do problema – é o que pensa a maioria de nós –, numa atitude de cidadania e comprometimento com a boa educação.
“Estamos condenando esta geração de crianças e jovens. Os riscos são pouquíssimos”, defende com ardor a psicóloga Viviane Senna, presidente do Instituto Ayrton Senna. Dias atrás, OMS, Unicef e Unesco fizeram, no mesmo sentido, um apelo aos governos para que coloquem a abertura de escolas como prioridade. Segundo as entidades, ainda não existem evidências suficientes para declarar que foi a reabertura de escolas que eventualmente agravou a transmissão da Covid-19 nas comunidades que a realizaram, quando as medidas de proteção e de saúde foram devidamente adotadas.
Há dois meses, as escolas privadas de Manaus retornaram às suas atividades presenciais e nenhum caso de registro de infecção pelo coronavírus. Com bom planejamento, seguiram os seis eixos principais – sobejamente conhecidos e exequíveis – com base nos padrões internacionais. O reinício deu-se de forma gradual e não obrigatória, com turmas de quatro alunos e, hoje, com cerca de 15. É justificável o receio, pois os pais foram estimulados desde o início da pandemia pelas necessárias e intensas campanhas pelo isolamento por parte da mídia e dos governos. Aos poucos, parte do medo acaba se dissipando quando a família visita a escola e presencia um ambiente com uma rotina que segue todas as normas recomendadas. E regras de ouro existem para bons resultados na reabertura: retorno gradual, respeito ao livre arbítrio dos responsáveis pelos alunos e rigor na implementação dos protocolos de higiene e biossegurança.
Todavia, no Brasil, nove estados ainda estão sem prazo algum para o reinício das aulas. Nos demais, a retomada é escalonada e cuidadosa – o que se faz mister. Em vários países da Europa, as escolas foram liberadas antes do comércio: naqueles pertencentes à OCDE, as instituições de ensino permaneceram fechadas por 98 dias em média, com destaque para a França (56 dias) e a Alemanha (68). No Brasil, já vivemos mais que o dobro disso, tendo já sido ultrapassada a marca dos 200 dias. Estamos num dos lugares mais altos do pódio, juntamente com o Paraguai. O Uruguai estabeleceu protocolos de volta às aulas assim que a curva de infectados começou a apresentar redução. Manter as escolas fechadas por tanto tempo tem elevados impactos negativos, entre eles o aumento significativo das evasões e o comprometimento das condições socioemocionais dos discentes.
Por outro lado, neste momento, uma abertura ampla seria uma insanidade, pois a média móvel é ainda alta, mesmo que em recente tendência de desaceleração. Os estados que já retornaram ou agendaram o reinício levaram em conta as condições imunológicas e o baixo índice de transmissibilidade nas regiões liberadas, sendo priorizadas as escolas mais bem estruturadas para atendimento às condições de biossegurança. E se houver unidades escolares com eventuais casos de contágio? Seguem-se os protocolos dos agentes de saúde e os isolamentos pontuais e cirúrgicos. Afinal, não foi assim que agiram alguns países, como França e Israel, ou mesmo em escolas públicas do Amazonas?
Se é importante que sejam estabelecidos prazos para a abertura, mais que isso é necessário definir-se o como abrir, tema este que se deveria debater. Essa tarefa exigirá semanas de um bom planejamento organizacional e financeiro, bem como da complexa e dispendiosa reconfiguração do espaço físico e implementação das normas sanitárias e de biossegurança. Tudo será diferente, se comparado com o retorno após as tradicionais férias de verão, sempre festivo, com abraços efusivos e aquela algaravia que soa como música aos ouvidos dos educadores.
Agora estamos vivenciando um período excepcional de afastamento de seis meses, do qual advêm não só alunos, mas também professores e funcionários que passaram ou ainda estão passando por experiências negativas, até mesmo traumáticas, como insegurança, descontrole emocional, perda de renda, óbitos de familiares ou conhecidos. A ênfase das primeiras semanas é o acolhimento, o vínculo afetivo, correção de disparidades de aprendizagem, equalização dos conteúdos de cada componente curricular.
O discente vai encontrar outra escola, seja antes, durante ou após as aulas. Não menos fácil será estabelecer a divisão entre os conteúdos que serão presenciais ou remotos, uma vez que não será viável um retorno pleno no curto e médio prazo. Mais do que nunca, escola e família devem ser parceiras; mais do que nunca, a direção deve manter uma boa comunicação e transparência diante da comunidade escolar, pois haverá revezes, imprevistos ocorrerão.
Jacir J. Venturi, professor, foi diretor de escolas públicas e privadas, e docente da UFPR, PUCPR e Universidade Positivo.