| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Tem muita coisa no dia a dia que me causa um desconforto sem fim: esperar na fila do Departamento de Trânsito, tão malfeita que torna inevitável a perda da vez do atendimento; todo e qualquer tipo de self-service, cujas regras implícitas os mais selvagens abordam no estilo “Senhor das Moscas”, deixando a bancada de especiarias e condimentos do Starbucks, por exemplo, a maior bagunça depois de sua passagem por ali; prender a respiração e torcer para que a mulher do segundo banheiro agilize e vá embora logo, enquanto ela espera que eu faça exatamente a mesma coisa.

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E também tem as tragédias menores que me causam uma angústia profunda e contínua durante todos os momentos em que me vejo desperta: odeio tentar assinar o recibo do cartão de crédito, em papel tão liso que só deixa uns arranhões esquisitos enquanto eu me transformo em um poço de ansiedade porque estou segurando a fila. Odeio quando alguém vem em casa sem avisar e tenho de me sentar, imóvel, no canto da sala que não dá para ver da janela porque não quero que saibam nem que estou em casa, nem o que os gatos e eu usamos para ver tevê. Odeio quando tento entrar em um prédio ao mesmo tempo que outra pessoa, ambos naquele movimento “peraí, eu também sou educado” que resulta em uma dança desajeitada de vaivém que só acaba quando um de nós cai morto na calçada. O potencial de humilhação total se esconde em cada esquina e se apresenta em todas as situações da minha vida.

E é por isso que adoro reclamar. Por que o pessoal é tão ruim em convergir para a faixa única na estrada? Quando é que o meu vizinho vai cortar aquele galho podre – ou será que vai ser preciso cair no meu para-brisas para ele perceber o estado do negócio? Por que a minha conta de telefone veio tão alta este mês? Por onde anda Barack Obama? Quem mexeu no termostato e abaixou a temperatura para 20 graus? Por que todo mundo finge não se incomodar em rachar uma conta estratosférica quando eu só tomei um club soda e você, Kelly, quatro coquetéis caríssimos?

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Às vezes você só quer dizer para outra pessoa que a cabeça dói, que o almoço estava ruim e frio, que a van quebrou. É uma forma alternativa de fazer contato

Ser gente é terrível. E reclamar do fato é a forma mais pura e pacífica de protesto que existe. Reclamar é tão bom! É como se livrar daquele casaco de lã opressivo sob o qual você está escondido desde o fim do outono no primeiro dia bonito e quente da primavera. Gritar inutilmente para o vazio para protestar contra as pequenas injustiças sofridas é o alívio perfeito para a gigantesca onda de ansiedade que se quebra dentro da gente, um bálsamo para as feridas que o fato de dividir o transporte público com o cidadão que não usa fone de ouvido inflige à alma cansada.

Não precisa nem ser verbal. A careta e o revirar de olhos compartilhados entre mim e a outra mulher também incomodada com a mala imensa que o sujeito da 3B tenta esconder da comissária pode ter um efeito mais positivo que um longo abraço. Reclamar é um banho quente para os sentimentos.

Passei 17 anos trabalhando no setor de serviço ao consumidor, anos que destroçaram a minha alma – ou será que redobraram a minha força interior? Ou, como eu carinhosamente descrevo, passei esse tempo como refém, na função de uma caixa de ressonância indefesa, e alvo da ira de terceiros. Aí reclamava das reclamações dos outros para os meus amigos no happy hour, cuja promoção de margaritas pela metade do preço me rendia pelo menos meia hora de incrédulos “E você acredita que ela teve coragem de dizer uma coisa dessas?”

Desses, 14 foram passados na recepção de um hospital veterinário de subúrbio, local onde os filhotinhos vão tomar suas vacinas e onde um professor de ginástica uma vez passou 15 minutos me dizendo que pagava impostos altos demais. Minha mesa ficava a três metros da porta, ou seja, era o primeiro ser humano com que se deparavam os clientes que escolheram se atracar com o gato, depois de jogar um cardigã feito à mão sobre ele, para fazer limpeza de tártaro em pleno mês de dezembro.

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Para os clientes, eu não era uma pessoa, mas sim uma lata de lixo falante na qual podiam despejar suas reclamações, problemas que pouco tinham a ver comigo ou com as rações caríssimas que ninguém os forçava a comprar para seus cães de raça de US$ 2,5 mil. Eu era o quadro branco na qual a avozinha meiga de alguém tascava algum insulto casual disfarçado de pergunta simpática a respeito do meu dia. “Trabalhando muito?”, perguntava, mal disfarçando o desdém em relação à minha xícara de café pela metade.

Mas eu entendia o mecanismo. Às vezes você só quer dizer para outra pessoa que a cabeça dói, que o almoço estava ruim e frio, que a van quebrou. É uma forma alternativa de fazer contato.

Eu, porém, passei tempo demais ouvindo as lamúrias alheias para casualmente despejar as minhas sobre um inocente qualquer que por acaso esteja esperando o mesmo ônibus que eu. Quem merece mais ouvir as decepções acumuladas do meu dia: o mensageiro da UPS de 20 anos equilibrando pacotes e o computador de mão na minha varanda, na chuva, ou o tio racista do meu amigo vomitando besteirol no Facebook sobre os “moleques” que se ajoelham no campo na hora do hino nacional?

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É por isso que o momento em que vivemos é excepcional: tudo é terrível, ninguém está satisfeito, e agora temos mais canais do que nunca através dos quais destilar a litania de insultos, ofensas, desgostos e abusos dirigidos contra nós.

Reclamar é como passar hidratante na pele seca – e 2017 tem sido o ano mais árido de que se tem lembrança. Há mais motivos do que nunca para reclamar – e também razões que nos levam a crer que essas queixas servirão para alguma coisa.

Resista à tentação de despejar seus temores financeiros no tintureiro; em vez disso, faça um vídeo ou um daqueles textões que ninguém vai ler mesmo. Depois de esgotar esses canais, quando achar que já não tem mais do que se lamentar, pense em mais alguma coisa e ligue para o seu deputado no Congresso. Assim, quem sabe, você ajuda a transformar sua raiva surda em uma assistência médica acessível.

Samantha Irby é escritora.