Foto de momento antes da partida entre Argentina e Arábia Saudita na fase de grupos da Copa do Mundo, em 22 de novembro de 2022.| Foto: EFE/ Rodrigo Jiménez
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A Argentina foi campeã da Copa de 1986 graças a um gol irregular. Nas quartas-de-final, contra a Inglaterra, o mundo inteiro viu Maradona empurrar a bola com a mão para a rede adversária. O lance foi eternizado como um dos erros de arbitragem mais vergonhosos da história das Copas.

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Maradona batizou o gol de “A Mão de Deus” – como se Deus fosse a favor da trapaça – e nunca negou ter usado a mão. Ao contrário: a “peculiaridade” daquele feito parecia deixá-lo ainda mais orgulhoso. Uma das regras mais básicas do futebol fora quebrada. Mas a decisão final cabia ao árbitro da partida, Ali Bin Nasser. E ele validou o gol.

Dizer que a Argentina não venceu aquela Copa seria irracional. Mas afirmar que aquele foi um título legítimo que merece ser aplaudido como todos os demais seria incoerente.

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A Argentina ganhou um troféu, mas não o respeito. Ficou com o triunfo, não com a glória. Sua conquista consta nos livros, mas não desperta aplausos.

O troféu não foi tirado dos argentinos, e nem deveria. Afinal, se todas as partes envolvidas concordaram, antes da Copa, que o juiz em campo seria a autoridade máxima de cada partida, todos estavam implicitamente aceitando a possibilidade de erro, pois juízes de futebol nunca foram infalíveis.

A Argentina ganhou um troféu, mas não o respeito. Ficou com o triunfo, não com a glória. Sua conquista consta nos livros, mas não desperta aplausos. Naquele dia, o principal derrotado não foi a Inglaterra, mas o próprio esporte.

O fato de o resultado estar consolidado não significa que os processos de uma partida profissional de futebol não pudessem ser aperfeiçoados. E eles, de fato, o foram. Vieram a tecnologia, a capacitação mais rigorosa dos árbitros, a revisão de lances capitais e o já conhecido VAR. Vencer uma Copa do Mundo com um gol de mão nos dias atuais é uma tarefa virtualmente impossível, e esta é uma boa notícia para todos os participantes.

Obviamente, ninguém argumenta ser contra o VAR dizendo que “gols de mão fazem parte do jogo”, pois todos que gostam de futebol reconhecem – mesmo inconscientemente – que a legitimidade da arbitragem é a garantia de sobrevivência do esporte. O jogo só tem graça se existirem regras a serem respeitadas. Sem isso, haveria anarquia, não disputa. Seriam apenas vinte e dois homens correndo atrás de uma bola, não duas seleções preparadas, cada qual com sua própria estratégia.

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Argentina campeã de 1986? Sim. Mas Maradona marcado para sempre? Claro. Num mundo normal, vencedores precisam aceitar críticas, questionamentos e trâmites processuais. Eles venceram, mas até mesmo vitórias têm consequências. O juiz Ali Bin Nasser, por exemplo, ficou marcado para sempre. Alguém por acaso imaginaria o contrário? Será que Ali esperava ser eleito “Melhor Árbitro do Mundo” ou ser convidado para palestrar em Nova York sobre “Dicas para um Arbitragem Eficaz”?

Não. Quando o jogo acabou (ou talvez ainda em campo), ele soube que errou. Se o fez por malícia ou por incompetência, só ele e Deus sabem. Mas fato é que a Copa de 1986 chegou ao fim, mas a história não foi reescrita. Reconhecer um resultado não é a mesma coisa que apagar da memória todas as irregularidades que permitiram que tal resultado ocorresse. Reconhecer um resultado é resignar-se com o fato de que a Copa de 1986 acabou, mas também envolve amar o conceito de Copa do Mundo a ponto de lutar para não permitir que as Copas seguintes sejam tão maculadas quanto a última. Gols de mão existem para serem lamentados, não celebrados. Eles devem gerar reflexão e correção, não amnésia e censura.

Mecanismos de supervisão dos árbitros, uso da tecnologia em lances difíceis, punição aos envolvidos no erro. Tudo isso faz parte do jogo e até os argentinos mais honestos admitiriam que tudo isso se faz necessário (desde que seu troféu esteja a salvo, é claro). Dizer que aquela Copa, embora finalizada, está manchada não é um ato “antifutebolístico”. Ao contrário: é uma prova de amor ao verdadeiro futebol. Reconhecer o resultado, sempre. Aceitá-lo bovinamente, jamais.

Este ano é ano de Copa, e também o ano do nascimento da minha primeira filha. Quando ela estiver acompanhando os jogos da seleção ao meu lado, conversaremos sobre algumas Copas inesquecíveis. Vou contar a ela sobre 1994, com Romário e sua autoconfiança trazendo o tetra. Falarei da de 2002, com Ronaldo brilhando após lesão gravíssima. Relembrarei o 7 x 1 de 2014. E, se a de 1986 estiver em pauta, direi: “Filha, a Argentina ganhou aquela, mas papai precisa te explicar algumas coisas...”

Afinal, pior do que sofrer com os erros de uma arbitragem omissa, incompetente ou claramente comprometida com a vitória de um dos dois times é ser proibido de falar sobre esse tema, obrigado a usar uma camisa da Argentina ou a cumprimentar o Maradona por sua excelente habilidade com as mãos. Podemos perder o jogo, mas não o senso de realidade. Vale para Copas do Mundo, e para outras disputas também.

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Mas a história não acaba aí. Em 14 de outubro de 2022, o ex-árbitro Ali Bin Nasser chocou o mundo ao anunciar que leiloaria a bola da partida entre Argentina e Alemanha por R$ 17 milhões. Ele a guardara como souvenir e agora queria lucrar com ela. Nasser aparentemente não se envergonha dos próprios erros e tem a audácia de escarnecer do futebol, que, ocupado em dar palestras sobre fair play e “antirracismo”, não repudiou a venda da prova de um crime.

Não quero acreditar que, décadas depois, em tempos de VAR, juízes injustos ainda possam fazer o mesmo. Espero não ter que um dia dizer à minha filha que somos “manés” obrigados a aprender a perder de quem zomba de nossa vã ilusão de tentar vencer dentro das quatro linhas (e sem usar as mãos).

Arthur Vivaqua é pastor e consultor em marketing aplicado à educação.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]